Descrição de chapéu Dias Melhores

Ex-frequentadores da cracolândia vão encontrar o papa Francisco

Projeto Pão do Povo da Rua, que torna ex-usuários padeiros e confeiteiros que distribuem alimento, leva comitiva para falar sobre fome no Vaticano e na ONU

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Grupo de pessoas segurando passaportes
Eles integram a 'comitiva do pão' que visitará o papa.  Na parte de trás (esq. para dir.), estão Wesley Vidal (diretor-executivo), Eduardo Martiniano, Daniel Batista dos Santos, William dos Santos e Fred Neslson Aquino Sanches; à frente, estão Thiago Oliveira, Welligton Hudson, professor Ricardo Frugoli (centro) e Ricardo Mendes; e, agachados, Gabriel de Azevedo Costa e Daiane Rodrigues Olímpio

A 'comitiva do pão' que visitará o Papa Francisco com, na parte de trás (esq. para dir.), Wesley Vidal (diretor-executivo), Eduardo Martiniano, Daniel Batista dos Santos, William dos Santos e Fred Nelson Aquino Sanches; à frente, com Thiago Oliveira, Welligton Hudson, professor Ricardo Frugoli (centro) e Ricardo Mendes; e, agachados, Gabriel de Azevedo Costa e Daiane Rodrigues Olímpio Katiuska Sales/Divulgação

São Paulo

"Não é padre, não é pastor. É professor", repetia Ricardo Frugoli ao ouvir "Deus te pague, abençoe e proteja" aos montes durante a distribuição de pães na praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo.

"Não tenho problema com acolhimento religioso, mas meu negócio é dar comida", diz o gastrólogo que, em 2020, na pandemia, trocou a alta gastronomia pelo projeto social que alimenta pessoas em situação de rua.

O professor barbado e de óculos, com ares de bom samaritano, embarca neste domingo (19) com sete ex-moradores de rua rumo à Itália, onde serão recebidos pelo papa Francisco no Vaticano na quarta (22). Um dia antes, vão à FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) falar de insegurança alimentar.

Homem de óculos, barba, roupas brancas
O gastrólogo, professor e chef Ricardo Frugoli, idealizador do Pão do Povo da Rua - Katiuska Sales/Divulgação

"Imagina só, o cara saiu da Princesa Isabel e vai ser recebido com coquetel e honras na Embaixada de Roma, na ONU e no Vaticano", comemora Frugoli, 54, idealizador do Pão do Povo da Rua.

A "comitiva do pão" é como se autointitula a delegação escolhida a dedo entre os 28 acolhidos atualmente pelo projeto —pessoas que passaram pela rua, por albergues, pela cracolândia, em sua maioria ex-usuários de drogas, que colocam a mão na massa, como padeiros, cozinheiros e confeiteiros formados pela ONG, para alimentar os sem-teto. São todos remunerados, com contrato fixo e salários que iniciam em R$ 1.750.

O braço-direito de Frugoli é Ricardo Mendes, 44. Usuário de crack durante dez anos, após experimentar a droga por uma desilusão amorosa, está limpo há três. "É muito difícil aprender a esquecer o crack. A mente tenta sabotar o tempo todo, o tempo todo", diz ele.

Sua pele traz vestígios —tem a cicatriz de um furúnculo causado pela substância e também a tatuagem em homenagem ao professor que salvou sua vida.

braços com tatuagens que dizem Pão do Povo da Rua
Tatuagens em homenagem ao Pão do Povo da Rua nos braços de Ricardo Mendes e de Ricardo Frugoli - Divulgação/Katiuska Sales

"Quando eu não tinha mais perspectiva de vida, encontrei o professor na praça. E depois de uma noite debaixo de chuva, vim caminhando até aqui. Todo mundo pode salvar alguém", afirma o ex-frequentador da cracolândia.

Na praça ou na porta da ONG, é Daniel Batista, 39, quem organiza as filas. "Eu falo a língua deles, de igual para igual. Morador de rua não aceita não", diz ele, que foi usuário de cocaína por dez anos, morou em ocupação e agora vai embarcar para Roma.

Em uma das distribuições, chegou a tomar cadeirada nas costas de um rapaz ao dizer que a comida tinha acabado. "Foi um esquecimento meu, porque temos que dar um jeito."

Um desses "jeitos" é improvisar —com o leite, por exemplo. "Não dá para dar leite todo dia. Tem dia que é chá, pois não temos 500 litros por semana."

E o pão é mesmo o carro-chefe da casa. "É macio, por causa da dentição; bonito, para atrair; gostoso e nutritivo, porque não damos presunto, queijo ou manteiga", afirma o chef sobre a receita da amiga Adriana Aranha.

Cesta com produtos do Pão do Povo da Rua que começa a ser vendida
Cesta com produtos do Pão do Povo da Rua, que inclui pãozinho nutritivo e saboroso que alimenta moradores de rua - Ale Ruaro/Divulgação

São 2.400 pães produzidos diariamente na cozinha do projeto, de onde também saem 400 pratos no almoço feito em parceria com a Prefeitura de São Paulo. Até 1.500 pessoas não passam fome, todos os dias, graças ao Pão do Povo da Rua.

E, à noite, a padaria ainda distribui 150 marmitas que alimentam famílias de até quatro pessoas de baixa renda que vivem no Bom Retiro. E, pelo menos uma vez por mês, a ONG distribui cestas básicas na região central.

Para manter o projeto de pé, Frugoli conta que ia desde fazer bolinho até dirigir a Kombi amarelo e branca lotada de pães. E foi o chef quem tirou os sete das ruas. Comprou barracas para abrigá-los da chuva e do frio e foi buscá-los na cracolândia em recaídas. Firmou parceria com a Universidade Mackenzie para que voltassem aos estudos.

É ele quem recebe ligações de mães perguntando se os filhos estão vivos. Ou do dono do alojamento, que sabe que foi um dos seus que escondeu o cachimbo dentro do chuveiro.

E é o padeiro do coração grande que, até hoje, se tem dinheiro no bolso, esvazia tudo para comprar cigarro, escova de dente ou o que for para quem pede ajuda.

"Uma coisa forte que ouço é ‘eu dou a vida pelo senhor’", diz ele, que em certo ponto precisou lidar com o burnout. Em um momento de angústia, pichou "utopia" nas paredes do local que abriga o Pão do Povo da Rua, antigo armazém de alimentos na 2ª Guerra Mundial.

"Tinha um sentimento de derrota. Fui aprendendo a lidar com a doença, que tem seu tempo e que passa pelo emocional."

'Quando eu não tinha mais perspectiva de vida, encontrei o professor na praça [Princesa Isabel]. Todo mundo pode salvar alguém'

Ricardo Mendes

ex-usuário de crack e membro do Pão do Povo da Rua

O desafio é manter em pé as duas frentes de trabalho —a de resgatar vidas das ruas e a de alimentar as que continuam nelas.

A primeira delas é marcada por altos e baixos, já que alguns não conseguem voltar à cozinha após recaídas com crack e cocaína. E a segunda é reagir aos que o querem fora dali "por causa da fila, da sujeira e daqueles que dormem nas calçadas após o rango".

"Fui ameaçado de morte, querem pôr fogo no projeto", lamenta o chef.

Única mulher na comitiva do pão, Daiane Rodrigues, 35, diz que vai pedir ao Papa Francisco que cuide da "sua bênção", o filho adolescente que mora com a avó.

Vítima de violência doméstica por cinco anos, Daiane encontrou no projeto motivo para sorrir. "Tentei tirar a vida quatro vezes e hoje sei que se demorar meia hora para chegar aqui, já começam a me procurar", diz ela emocionada.

Ainda compõem a comitiva Eduardo Martiniano, 37, Gabriel de Azevedo Costa, 28, Fred Nelson Sanches, 26, Willian dos Santos, 26, e Wellinton Silveira Trancanella, 22.

O Pão do Povo da Rua administra nove diferentes ações, entre elas um curso de panificação e confeitaria de 400 horas com chefs renomados, do círculo de amizades de Frugoli, que dão aulas gratuitas.

'Tinha um sentimento de derrota. Fui aprendendo a lidar com a doença, que tem seu tempo e que passa pelo emocional'

Ricardo Frugoli

sobre o acolhimento a ex-usuários de drogas

Pedir doações para o projeto virou rotina para o gastrólogo, que não esconde a frustração de não ter um grande patrocinador que o permita pagar o aluguel e os salários da equipe sem sufoco. "O brasileiro doa, mas só quando tem tragédia. Uma vez nossa Kombi pegou fogo. Em uma semana, me doaram seis Kombis."

Uma tentativa é a venda de suas especialidades em pontos diferentes da cidade. "São carrinhos elétricos que vão com café, bolinhos e pães, e vamos ter um showroom no Copan."

"Ele prova quase toda comida", relata Thiago Augusto Oliveira, 31, ex-aluno de Frugoli que é o cozinheiro-chefe da panificação. "Fala para melhorar isso e aquilo, aqui não tem comida de baixa qualidade. É como um restaurante, servimos alta gastronomia para morador de rua."

Tanto que o chef levou os aprendizes para jantar no estrelado Casa do Porco. "O pessoal está acostumado com prato cheio e estranhou quando comeu refeição gourmet", brinca o cozinheiro.

"Ricardo leva o povo ao teatro, abre portas inimagináveis, expande nossos horizontes. E sempre diz: não tenho dinheiro, mas tenho amigos."

Tanto ele faz pelos seus e por quem não conhece que, para os sete que encontrarão o papa Francisco, nem o pontífice de Roma merece tantas reverências quanto o professor.

"Eu só pratico a teoria da dádiva: dar, receber e distribuir."

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