'Eu era uma traça gorda, mas o meu jantar foi retirado da estante de livros', diz texto de Pedro Bandeira

Leia crônica especial do autor para a Folhinha sobre pandemia do coronavírus

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Pedro Bandeira

Um dos maiores nomes da literatura infantojuvenil no Brasil, autor de livros como “A Droga da Obediência” (1984) e “O Fantástico Mistério de Feiurinha” (1986), Pedro Bandeira enviou à Folhinha crônica em que conta o drama de uma traça em meio à pandemia.

Na ilustração, traças de óculos leem sobre pilhas de livros
Ilustração para crônica de Pedro Bandeira - Adobe Stock

Sou uma traça.

Há tempos tive a felicidade de instalar-me numa imensa estante de livros e por isso eu era uma traça gorda, muito bem alimentada. E eu não admitia que viessem me falar em fazer regime porque minha despensa estava muito longe de se esgotar. Além do mais, o dono da estante deveria ser muito ocupado, pois raramente aparecia para perturbar as minhas refeições.

Mas agora tenho uma queixa dolorosa: dizem que um animalzinho minúsculo, muito menor do que eu, voraz, guloso, resolveu habitar nos humanos e até matá-los!

Com medo disso, o dono da estante e dos livros está preso em casa para se esconder desse anãozinho. E vejam que infelicidade! Eu estava justamente jantando um volume dos “Irmãos Karamazov”, uma refeição para quatrocentos talheres, não tinha ainda devorado nem a página de rosto, quando meu jantar foi retirado da estante! Espanado do pó e do bolor, o livrão foi sacudido e eu tive de me esconder debaixo da lombada.

O meu jantar e eu fomos levados para o colo do dono da estante e eu tive de me virar para não ser descoberta a cada página virada.

Bem encolhida, fiquei a pensar no que irá acontecer com a minha espécie... Lembro-me de ficar sabendo, ao devorar um capítulo de “Biologia para Principiantes”, que toda a vida na Terra tinha sido exterminada há milhões de anos pela colisão de um imenso rochedo que viera dos ares. Quer dizer que agora a minha espécie vai ser exterminada não por um gigante, mas por um minúsculo verme? Bem, verme sou eu, esse invasor não passa de um cocozinho de verme!

Com o rabo do olho, vejo um jornal dobrado na mesa ao lado de onde se senta o dono da estante e dos livros. E ali está escrito que o governo do Uruguai, por causa de todo mundo de seu país estar preso em casa para fugir do anãozinho, está distribuindo cestas básicas com comida para as famílias e, junto com latas e pacotes, na tal cesta vão... livros!

Livros para ocupar essa gente toda que não tem o que fazer fechados em casa! Não são livros para alimentar a minha espécie, não! São verdadeiros atentados a minha espécie! Será... será que eu vou ter de emagrecer? Ai, ai, ai, “Os Irmãos Karamazov” eram tão gostosinhos...

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