Conversa é mais efetiva que punição para lidar com mentiras das crianças

No dia 1º de abril, irmãs contam histórias pessoais e psicóloga diz que pequenos 'no fim das contas mentem por amor, para poder agradar todo mundo'

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São Paulo

Este sábado é dia 1º de abril, o famoso Dia da Mentira, quando pregar peças e enganar os amigos é permitido sem culpa —desde que, claro, os que caírem nas pegadinhas sejam avisados de que tudo não passava de uma brincadeira.

Iully D. C., 10 anos, está feliz da vida que esse dia chegou. Não que ela já tenha se programado para contar boas mentiras, mas sim porque neste sábado (1º) se completa um mês desde que seus pais proibiram que ela usasse eletrônicos, tudo porque Iully… contou uma mentira.

As irmãs Iully e Agatha brincam no quintal de casa, em São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress

"Não foi legal, meus pais ficaram bem chateados, eu fiquei chateada, e no final sou eu que me ferro. Eu tô de castigo e só acabava dia 1º de abril. Foram duas coisas: a primeira foi que eu tava vendo TV e assisti uma coisa que era pra cima da minha idade, e não podia. E a segunda coisa foi que eu comprei um lanche na escola e não contei para os meus pais", explica Iully.

Além da felicidade de voltar a usar os eletrônicos de que gosta, talvez ela consiga também mais uma coisa boa no dia. Lendo este texto aqui, vai ficar mais fácil de se lembrar que é 1º de abril e que, só por hoje, tudo bem brincar um pouquinho por aí.

"Normalmente eu sempre esqueço que é 1º de abril, então só contei mentira uma vez nesse dia, e nem foi uma coisa tão grande. Eu só enganei minha amiga, falando que eu ia mudar de escola e ela caiu, mas depois eu falei que era mentira", diz.

Às vezes eu acho que, se eu contar a verdade, eu vou ficar mais ferrada ainda, só que depois no final se eu minto é bem pior. A maioria das vezes quando eu minto eu escondo, eu tenho medo de brigarem comigo

Iully, 10 anos

estudante e irmã da Agatha

O grande sonho de Iully em um Dia da Mentira próximo é colocar um balde com água em cima da porta do quarto dos pais. "É pra quando eles acordarem eles abrirem a porta e cair água em cima deles, e eu falar 'Primeiro de abril!'. Só que eu nunca lembro, nunca."

Iully diz que mentir não é muito legal, mas que às vezes parece inevitável. E ela também acha que existe diferença entre mentirinhas e mentironas. "Às vezes uma mentirinha é só pra brincar, zoar com a cara da pessoa, e uma mentirona tipo deixa real a pessoa bastante chateada", compara.

"Às vezes eu acho que, se eu contar a verdade, eu vou ficar mais ferrada ainda, só que depois no final se eu minto é bem pior. A maioria das vezes quando eu minto eu escondo eu tenho medo de brigarem comigo."

A irmã de Iully, Agatha, 7 anos, também diz que fica com medo de mentir. "Porque eles [os pais] podem brigar, né?", diz. Na entrevista, ela revelou que ganhou "um pacotinho de M&Ms" de uma amiga na escola, coisa que seu pai só ficou sabendo ouvindo as respostas dela à Folhinha.

"Meus pais ficam chateados quando eu como coisa escondida, eles não deixam eu comer muito chocolate porque eu posso ter diabetes. Um dia, pelo que eu me lembro, eu perdi o tablet ou a TV. Me senti bem mal por ter mentido e por ter ficado sem TV, os dois", conta.

A psicóloga, psicanalista e mestre em educação pela USP Karina Bueno entende que as famílias em geral fiquem preocupadas quando descobrem alguma mentira contada pelas crianças, mas ela acha que a ideia de tirar dos filhos coisas de que eles gostam não funciona. "Quando a criança fica de castigo, ela vai pensar na amiga, no desenho, em qualquer outra coisa menos no que de fato aconteceu", acredita Karina.

Ela sugere aos adultos conversar com a criança e perguntar por que ela achou que mentir era uma boa solução.

"É muito valioso e efetivo um pai dizer que está triste que o filho precisou mentir, e que agora eles precisam pensar juntos sobre como evitar que isso aconteça de novo. Tem adulto que não consegue se colocar e falar verdadeiramente com a criança, mas dizer que está arrasado é importante. Arrasado com a criança, mas também com ele mesmo."

Karina explica que a mentira faz parte do crescimento e do desenvolvimento, e que vamos aprendendo a mentir ao longo da vida. Para ela, uma mentirinha se diferencia de uma mentirona pelas consequências de cada uma.

Agatha concorda: "Na mentirinha a pessoa fica um pouquinho chateada e na mentirona ela fica muito chateada", define.

"A brincadeira por si só é uma mentira", lembra Karina. "Pense na brincadeira de faz de conta, de fazer comidinha, de se fingir que é piloto de avião. Essas brincadeiras têm a gente fingindo, ou seja, mentindo, e a cultura geral concorda com isso", diz.

É por este motivo, comenta Karina, que o 1º de abril não é um problema para ninguém: ele é baseado em um acordo de todo mundo, que sabe que nesta data acontece o Dia da Mentira e algumas liberdades são concedidas.

Nos outros 364 dias do ano, o assunto só vira um problema quando as pessoas —e não só as crianças— só conseguem se relacionar com os outros por meio das mentiras, diz a psicóloga, e aí vale procurar ajuda de profissionais como ela.

"As crianças sempre sabem que estão mentindo, mas às vezes não conseguem fazer diferente porque têm medo de que o amigo não vá mais gostar dele, medo de ficar sozinho, de que o pai vá dar bronca ou de que não vá mais fazer parte de um grupo de que ele gosta", avalia Karina.

"E a gente vai entendendo que, no fim das contas, elas mentem por amor, para poder agradar todo mundo. Só que são muitas pessoas no mundo, e cada um quer algo diferente. Então, é importante saber que dá para fazer parte sendo a gente mesmo. A gente também é bonito, a gente também é importante, a gente também tem coisas boas dentro da gente."

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

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