Descrição de chapéu Livros

Crianças opinam sobre o revisionismo que quer tirar 'partes ofensivas' dos livros

'Uma obra é bem maior que uma palavra, as pessoas têm que refletir e entender por que aquilo tá errado', diz leitor de 11 anos

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São Paulo

Já há algum tempo os adultos vêm debatendo se devem ou não modificar partes de livros infantis que algumas pessoas consideram ofensivas. Em geral o foco são adjetivos, presentes em obras de vários autores, de diferentes países e épocas. No entanto, embora esse seja um assunto importante, as crianças não vêm sendo consultadas sobre ele.

A Folhinha decidiu, então, ouvir a opinião de seis leitores a este respeito. Antes da entrevista, foi explicado a eles que as modificações já aconteceram em algumas partes do mundo. O selo Puffin, que publica os livros do escritor Roald Dahl no Reino Unido, mexeu em histórias como "A Fantástica Fábrica de Chocolate" e "Matilda". Palavras como "gordo" e "feio" foram removidas.

Ilustração de "Matilda", de Roald Dahl
Ilustração de 'Matilda', de Roald Dahl - Penguin Random House/Divulgação

Um livro de Agatha Christie nos Estados Unidos teve a palavra "nojento", que classificava os olhos e narizes de alguns personagens, trocada para "revoltante". No Brasil, a editora que cuida da obra dessa autora preferiu não fazer as modificações e acrescentar comentários sobre os trechos "delicados".

Monteiro Lobato, considerado racista por alguns críticos, também vem passando por alterações. No livro "Reinações de Narizinho", Tia Nastácia era empregada da família; agora ela virou melhor amiga de Dona Benta. Até os contos de fadas entraram na polêmica: será que é tudo bem um príncipe beijar uma princesa dormindo?

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'O certo é explicar por que aquilo tá errado, e não apagar', afirma Tiê S. F., 11 anos - Danilo Verpa/Folhapress

"Esse beijo hoje em dia é muito errado, mas naquela época não era. E também tem que pensar que aquele é um mundo mágico, então você não sabe o que é certo ou errado lá. É tipo discutir se a roupa do Papai Noel é verde ou vermelha. O certo é explicar por que aquilo tá errado, e não apagar", afirma Tiê S. F., 11 anos.

"Uma obra é bem maior que uma palavra, que uma frase. As pessoas têm que refletir e entender por que aquilo tá errado. As pessoas que produzem os livros não podem simplesmente pegar a obra já feita e mudar ao gosto deles. O texto não é deles. Eles podem colocar reflexões, mas sem tirar nada."

Na vida real um príncipe não deveria beijar uma princesa, e um rato também não deveria dirigir uma carruagem feita de abóbora

Alice P. B., 11 anos

leitora

Para Tiê, há um risco nessa prática de modificar textos. "Se você só mudar, daqui a 50 anos uma história vai virar uma bula de remédio. Se ficar mudando, vai perdendo a história aos poucos. A história vai ser ‘Era Uma Vez, fim’", diz.

"É só uma história", concorda Sophia N. L., 10 anos, sobre a questão do beijo controverso. "Alguns livros podem chamar uma pessoa de gorda, desenhar essa pessoa feia. E se existe uma pessoa que tá lendo esse livro e é gorda, ela pode se sentir magoada", diz.

"Imagina uma pessoa que leu aquele livro e tem as mesmas características do personagem e se sentiu ofendida?", questiona Valentina F. M., 10 anos. Ela lembra como foi quando os meninos da sua sala falaram que ela era baixinha, gorducha e dentuça, como a Mônica dos quadrinhos. "Fiquei chateada."

Sobre o príncipe, ela diz que beijar uma princesa dormindo "não é normal". "E se ela não quisesse ser salva pelo príncipe ou ser beijada por ele? Isso pode interferir na cabeça das crianças", diz. De todo modo, Valentina acha que, para uma modificação ser feita num livro, é preciso ter a autorização do autor ou de "algum bisneto" dele. "Senão não acho certo", afirma.

Para Henrique G. M., 12 anos, as editoras não têm direito de mudar os textos dos outros. No máximo, ele diz, devem "retirar os livros do estoque". "Acho que os livros podem machucar os sentimentos de quem está lendo, porque podem fazer um comentário ou piada que seja muito ofensiva. Mas, se fosse só uma descrição de um personagem, não me incomodaria. E acho que é errado um príncipe beijar uma princesa que estiver adormecida, mas ali era pra salvar a princesa. Nesse caso, acho que tem menos problema", diz.

"Na vida real um príncipe não deveria beijar uma princesa, e um rato também não deveria dirigir uma carruagem feita de abóbora. [O beijo] É num conto de fadas, não aconteceu na vida real, então não vejo problema", compara Alice P. B, 11 anos. Sobre os adjetivos, ela diz que não a incomodam, porque não são uma crítica, mas uma descrição.

"Tá dizendo quais são as características de um personagem, ser magro, ser feio. Mas, se realmente for muito ofensivo e não muito necessário, poderiam conversar com o autor, se ele não estiver morto, e ver se tem como deixar menos ofensivo. Porque tem o perigo de alterar o sentido do que o autor queria passar."

Sua xará Alice L. F., também de 11 anos, diz que, se fosse dona de editora, "não fabricaria um livro que não fosse para todas as pessoas". Ainda que ache que o beijo do conto de fadas possa parecer "abusivo", e que se incomode com passagens que considera racistas em Monteiro Lobato, ela acha que não se pode mudar a história de outra pessoa.

"Porque foi aquilo que ele [o autor] pensou e planejou pra escrever. Seria um pouco chato se eu escrevesse um livro e uma amiga fosse lá e mudasse porque não gostou. Se quiser mexer, faz um live-action com sua versão da história", sugere.

Para o escritor e psicólogo Ilan Brenman, especialista em literatura infantojuvenil, uma das funções da literatura é mostrar a beleza da vida. "Só que a beleza só pode ser entendida se mostrarmos a feiura. Se a gente tirar as 'palavras feias', pensando que vão ofender alguém, vamos empobrecer a compreensão da vida e o mundo emocional da criança", diz.

Ele lembra que, quando era criança e se sentia acima do peso que gostaria de ter, encontrava nos livros identificação. "Eu sentia que não estava sozinho no meu sofrimento, e entendia o que estava acontecendo de uma forma espelhada, de alguém que sofria como eu lá na ficção", conta.

Ilan sugere que, diante de partes de uma história que incomodam, os leitores promovam conversas com os amigos e os adultos. "Se o personagem fez uma maldade com um passarinho, foi racista etc., você não vai queimar o livro, né? Se um texto for todo limpo, bonito, ele não vai gerar conversa. Ele só vai agradar, sendo que a literatura também serve para incomodar e nos fazer crescer", diz.

Cleo Monteiro Lobato, neta do escritor Monteiro Lobato, afirma achar essa uma discussão "muito complexa". Mas, no geral, Cleo acha corretas as mudanças. "Nossa sociedade e nossos valores evoluíram muito, e livros têm um papel muito importante na formação da criança", fala.

Desde 2020, ela vem fazendo sozinha a atualização de "Reinações de Narizinho". "Foi-se o tempo em que só existiam papéis de empregada e mordomo para atores negros. Meu objetivo é fazer com que minha atualização reflita esta mudança", completa.

A editora Record, que publica os livros de Roald Dahl no Brasil, mandou um comunicado para a Folhinha. "A gente é muito fã da 'Matilda', da 'Fantástica Fábrica de Chocolates' e dos outros livros do Roald Dahl. Optamos por manter o texto desses clássicos da forma original", diz o texto.

"Como o Roald Dahl não é mais vivo, a gente não tem como conversar com ele sobre passagens que hoje podem soar preconceituosas. Então, o que a gente costuma fazer é acrescentar uma nota, que normalmente é indicada por um asterisco, alertando que a obra literária é um produto de seu tempo e que deve ser lida com discernimento e certo critério. Assim, a gente consegue perceber o quanto a sociedade está mudando também", finaliza.

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

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