Descrição de chapéu Livros Quilombos do Brasil

Livros com personagens quilombolas ajudam pequeno leitor a se identificar

Autores do gênero criam protagonistas negros e dão à nova geração referências que pessoas mais velhas não tiveram

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São Paulo

"Por que a mula-sem-cabeça não tem cabeça, mas não se bate nas coisas?". Foi a pergunta da filha que fez a escritora Jaqueline Santana Queirós, 48 anos, criar "O Mistério da Mula Sem Cabeça". A ideia era responder à dúvida da menina.

Jaqueline nasceu no quilombo Acupe, na cidade de Santo Amaro, na Bahia. Ela é uma das diversas escritoras brasileiras de histórias quilombolas infanto-juvenis contemporâneas. Quilombola é um adjetivo relacionado aos quilombos, espaços de resistência que pessoas escravizadas criaram para se proteger da violência.

Mas o que a literatura quilombola tem de diferente e de parecido com qualquer outra história infantil?

"Meus personagens são sempre inteligentes, curiosos, se dão bem, são bonitos. A ideia é fazer a mesma coisa que os europeus fazem com os contos deles, só que dentro do quilombo", diz a escritora Jaqueline.

Raquel R. S., 8 anos, não curte Disney e adora as histórias quilombolas - Mateus Fernandes - 22.ago.23/Ascom Quilombo Quingoma

Raquel R. S. tem 8 anos e nunca foi muito fã das histórias da Disney. Só abre exceção para "Encanto" e "A Princesa e o Sapo". É que Raquel prefere as histórias quilombolas.

"Minha mãe, quando eu era pequena, me falava algumas histórias de pessoas negras, crianças negras de origem africana, e eu gostava muito porque eles pareciam comigo", conta.

Os livros narram histórias de personagens de quilombos, sejam eles heróis, princesas ou, simplesmente, crianças comuns, misturando ensinamentos ancestrais com o cotidiano.

"O Pequeno Príncipe Preto" segue nesta linha. A obra do ator e escritor Rodrigo França é inspirada no clássico francês "O Pequeno Príncipe", de Antoine de Saint-Exupéry, mas traz reflexões completamente diferentes da original.

Nela, a história do príncipe reflexivo em um planetinha minúsculo muda e é protagonizada por um menino negro retinto que vive a experiência de espalhar sua cultura e seu amor por sua ancestralidade.

A ideia é chegar mais próximo da realidade de uma criança negra e brasileira. A companheira do personagem principal é uma árvore Baobá. Quando chegam as ventanias, o menino viaja por diferentes planetas, espalhando amor e empatia.

Os cabelos são um dos principais motivos para Raquel gostar de obras do gênero. "Ela é uma princesa do quilombo que gosta muito do cabelo dela, é crespo", diz lembrando sua obra favorita, "Pretinha do Ébano", da autora Kalypsa Brito. "Eles parecem minha família, tipo minha mãe, minha avó e eu".

Para os autores, a identificação —ou seja, a possibilidade de o leitor ver coisas parecidas entre ele e os personagens do livro— é determinante para o nível de envolvimento com as histórias. Muitos deles cresceram sem a chance de ter as mesmas referências que Raquel agora tem, e por isso eles entendem sua importância.

"Nas escolas, as crianças se identificavam com o cabelo, com a cor, com a história", conta o escritor Davi Nunes. "As professoras também se interessavam, principalmente as professoras negras. Elas não tiveram um livro desse na época em que estudavam, então tinha uma comoção", lembra.

Em seu livro "Bucala: A Pequena Princesa do Cabula", a personagem principal tem um cabelo crespo em formato de coroa de rainha. Bucala tem poderes que protegem seu quilombo, localizado no bairro Cabula, de Salvador (BA).

"Ela voa num pássaro preto, anda na onça Sussuarana e mergulha nas águas de Oxum", conta o autor. Bucala é um anagrama, ou seja, uma mistura das letras de uma palavra, nesse caso, de "Cabula".

"O livro trouxe essa perspectiva de tratar a infância negra sem os estereótipos que eram tratados pela literatura infantil branca. Traz essa vivência de luta quilombola e de uma infância negra plena de aventuras, de brincadeiras, de possibilidades", afirma.

Um dia, quando divulgava o livro em uma escola de Salvador, Davi ouviu de uma aluna que aquele tipo de princesa não existia.

"Fui em um colégio mais de crianças brancas, e eu tive todo um processo de explicar como se construiu uma princesa quilombola, falar dos reinos africanos, de uma realeza construída dentro dos territórios negros e dos terreiros, dessa coisa de pensar a nobreza ligada sempre a uma Europa, à tradição ocidental", lembra.

O livro foi lançado pela editora Malê, que publica muitas coisas com cunho racial. Livros da Malê Mirim já foram adotados pelo programa do livro da prefeitura de São Paulo e também pelo programa do livro de Belo Horizonte.

Os livros produzidos por autores quilombolas são para todas as crianças, sejam elas quilombolas ou não. "Não existe literatura infantil, existe literatura. Quem é leitor se interessa pela literatura", diz a escritora Jaqueline, de "O Mistério da Mula Sem Cabeça".

Embora encontre conforto nos livros quilombolas, na escola a menina Raquel vive uma realidade diferente, porque essas leituras e assuntos não são discutidos.

"Uma coisa que eu não gosto de lá é porque tem muitas pessoas brancas e quase não tem ninguém negro, porque a escola é de rico e rico não sou eu, não sou rica. Eles podem ter dinheiro, bastante dinheiro, mas eles não têm tanto o amor que meu pai e minha mãe me deram. Isso é melhor do que dinheiro", diz.

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford

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