Não sei se você já ouviu falar sobre um tal vampiro de Curitiba, que morou por décadas num casarão que parece um castelo assombrado na capital do Paraná. E tem mais. Dizem que ele acabou de publicar os seus primeiros livros para crianças.
Legal, né? Só que tem alguns exageros nesse parágrafo aí de cima. É um pouco estraga-prazeres dizer isso, mas nem tudo é 100% verdade.
A parte dos livros é real. Eles se chamam "Chuva" e "O Ciclista" e acabaram de ser lançados pela editora Reco-Reco, novo selo infantil da Record. A diferença é que as duas histórias não são apenas para crianças. Como costuma ocorrer com as boas obras ilustradas, as histórias podem ser lidas por todo mundo —meninos, meninas, adolescentes, adultos e quem mais resolver mergulhar pelas páginas.
Mas em breve a gente fala mais sobre esses títulos, porque imagino que você esteja curioso sobre a parte do vampiro. E, não, esse escritor não é uma criatura que se alimenta de sangue inocente. Aliás, muito longe disso. O nome dele é Dalton Trevisan e é um dos maiores autores da literatura brasileira e da língua portuguesa.
Essa história de vampiro começou porque seus textos costumam ser recheados de violência e de personagens sombrios, principalmente do submundo curitibano. Além disso, um dos seus livros mais famosos foi lançado em 1965 e se chama exatamente "O Vampiro de Curitiba".
Para ajudar na fama de mau, Dalton raramente é visto por aí, não dá entrevistas, não deixa que ninguém tire fotos dele, tem contato só com um grupo pequeno de pessoas e não aparece em público nem quando precisa receber prêmios importantes, como por exemplo o Camões, o mais importante troféu literário do nosso idioma, recebido por ele em 2012. O fato de ter acabado de completar 99 anos só aumenta essa aura vampiresca.
Muita gente vai dizer: mas existe conto do Dalton Trevisan para crianças? Os dois livros, de alguma maneira, tratam da morte. Mas fazem isso de uma maneira tão lírica, tão bonita e com tanta imaginação que são pequenos poemas em prosa. Acho que essa é uma maneira de renovar um público do Dalton
Quem conhece o autor, porém, diz que tudo isso não passa de folclore. Na verdade, ele não tem nada de assustador, é boa-praça, atencioso, adora assistir a filmes no streaming e comer bombons Sonho de Valsa. Sua literatura, formada sobretudo por contos muito curtos e diretos, também está longe de se limitar à violência, ao terror e ao sombrio. Prova disso são os novos "Chuva" e "O Ciclista", que já podem ser vistos na Bienal do Livro de São Paulo, que começou nesta sexta, dia 6.
"Os dois são muito poéticos. Mas a obra inteira dele tem momentos assim, com trechos que você olha e percebe que são versos", diz Augusto Massi. O escritor, crítico e professor de literatura brasileira na USP, a Universidade de São Paulo, é uma das pessoas que se correspondem com Dalton e foi o idealizador da dupla de livros ilustrados.
Ambos os contos não são inéditos e foram escritos originalmente na década de 1950, há quase 75 anos. Apesar de terem apenas cinco parágrafos cada um, são histórias densas e com um trabalho de escrita afiado e cuidadoso. Tudo é enxuto. Cada palavra é escolhida, exata, importante, encaixada. Toda letra desempenha uma função. É como se estivéssemos diante de uma orquestra com poucos instrumentos, mas todos afinados, muito bem ensaiados e feitos sob medida para tocar aquela música.
Isso fica claro em "O Ciclista", que fala de um personagem que pedala imerso no trânsito da cidade. A história, que ganha agora ilustrações de Odilon Moraes, começa assim: "Curvado no guidão lá vai ele numa chispa —e a morte na garupa". Não parece letra de rap? Não soa como música?
"Como você fica sempre em dúvida e nunca sabe se o ciclista morreu ou está sonhando, as imagens também vão por esse caminho", conta Moraes. "Tem um esfumaçado que é da imaginação, mas também do trânsito, do cinza, da cidade."
Já "Chuva" utiliza outro recurso. O texto costura diferentes pontos de vista para narrar um toró caindo pela metrópole. Às vezes surgem coisas muito pequenas, como sapatinhos sujos de lama e óculos embaçados. Em seguida, somos banhados por imagens grandes e revoltosas. "Um afogado afunda terceira vez no rio Belém", diz o texto. E o leitor perde o ar.
Tudo ganha uma cara de história em quadrinhos com as ilustrações de Eloar Guazzelli. "Toda obra literária pode ser transposta em imagens", fala o artista visual, que já adaptou nomes como Guimarães Rosa, Mário de Andrade e vários outros. "Mas ‘Chuva’ foi até mais fácil, porque a narrativa é uma sucessão de recortes bastante visuais", completa ele, citando uma técnica muito usada na poesia, o que faz do conto quase um poema em prosa.
Apesar de não falar com a imprensa, Dalton Trevisan autorizou que fosse publicado aqui o trecho de uma carta que ele escreveu para Augusto Massi sobre os dois lançamentos.
"Muito me desvaneceu os magníficos livrinhos", comentou ele. "Isso, sim, que é broinha de fubá mimoso —e logo uma cesta cheia. Me banhei em água de rosas com as ilustrações, toque perfeito de graça, alegria para os olhos."
E aí, parece a fala de um vampiro?
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