São Paulo, Sexta-feira, 2 de Julho de 1999






Biólogo diz que a Terra pode aguentar entre 1 bilhão e 2 bilhões de pessoas; água, doenças emergentes e aquecimento global são as novas ameaças


MARCELO LEITE

especial para a Folha

Paul Ehrlich, o homem que assustou o mundo em 1968 com o best seller “A Bomba da População”, tem pressa.
A secretária do laboratório de biologia de populações na Universidade Stanford (Califórnia, EUA) que atendeu o telefone no último dia 15, além de confirmar o recebimento do fax com perguntas, avisou que ele iria responder no ato.
22.abr.99/Associated Press
Socorro Estudantes de San Francisco formam um SOS na praia, na comemoração do "Dia da Terra"; os "oceanos" na letra O foram feitos com sacos de lixo recolhidos na orla

Já na linha, Ehrlich, 67, disse que só dispunha de alguns minutos, porque tinha acabado de voltar de uma cirurgia de coluna (“Pode te matar ou te curar. No meu caso, acho que curou”), mas falou por quase meia hora. Dispensou a leitura das perguntas enviadas, passando a responder pelo número. Não mede a língua, nem sobre o Congresso dos EUA: “Temos a mais fraca e estúpida legislatura desde 1875”.
Paul Ehrlich
O biólogo Paul Ehrlich é o titular da cátedra Bing de Estudos Populacionais da Universidade Stanford, na qual investiga populações de borboletas há quase 40 anos. Ficou famoso a partir de 1968, quando publicou “A Bomba da População”, que o transformou numa espécie de Malthus do século 20. Ele previa no livro que a explosão populacional provocaria aumento da taxa de mortalidade e fomes em massa, que matariam no mínimo 10 milhões de pessoas por ano nas décadas seguintes. Nenhuma das profecias se verificou.

O biólogo continua alarmado, mas reconhece exageros e erros nas previsões. Considera todavia “estúpido” concluir que há segurança alimentar só porque os preços de grãos caíram em 1998 (segundo ele, por causa da crise econômica na Ásia) e a produção vem crescendo nos últimos 50 anos.
Para Ehrlich, o rumo atual da agricultura no mundo é insustentável, a começar pelo superutilização de recursos hídricos. “Só damos conta de sustentar 6 bilhões de pessoas porque estamos esgotando nosso capital.”
“Quando nasci, em 1932, havia 2 bilhões de pessoas. Quando ‘A Bomba da População’ foi escrito, em 1968, havia 3,5 bilhões. Desde que escrevi o livro, mais gente foi acrescentada ao planeta do que havia quando nasci. Quando as pessoas dizem que a explosão populacional acabou, não consigo entender.”

Folha - Nos anos 60 e 70, obras como seu “A Bomba da População“ e “Os Limites para o Crescimento“ deram forma ao debate sobre a explosão populacional. O sentido de emergência causado na época parece ter perdido ímpeto nos anos 80 e 90. O sr. concorda?

Paul Ehrlich - Um dos problemas é que a queda da taxa de fertilidade, particularmente nos países ricos, tem sido interpretado pela imprensa como o fim do problema. As pessoas ainda não se dão conta de quanto crescimento tem havido e quanto crescimento ainda está presente no sistema. Não fazem as conexões entre o aumento de dióxido de carbono e o número de pessoas no planeta, por exemplo.

Folha - Isso tem algo a ver com o fato de que as estimativas de taxas de crescimento da população têm sido revisadas para baixo, por causa das taxas de fertilidade declinantes também nos países em desenvolvimento?
Ehrlich - Certamente isso está relacionado com o fato de que a taxa de crescimento tem caído, e acho que isso é um sinal muito animador, mas de modo algum rápido o bastante. Ainda estamos nos dirigindo para alguma coisa entre 8 e 10 bilhões de pessoas, se a taxa continuar caindo.

Folha - Mas o sr. não tem certeza de que continue caindo?
Ehrlich - Ninguém tem. O que nos preocupa, claro, é a subida da taxa de mortalidade. É o que estamos tentando evitar. Já tivemos muito disso e ainda vai ficar mais sério em lugares como a África e a antiga União Soviética. A expectativa de vida tem caído nesses lugares, por causa da Aids e outras doenças. O potencial para essas doenças é terrível lá e, bem, em todo o mundo.

Folha - Ou seja, a taxa de mortalidade pode subir novamente, é o que o sr. está dizendo?
Ehrlich - Uma das coisas de que as pessoas não têm consciência é quanto se tem deteriorado o ambiente epidemiológico, e isso obviamente está relacionado com o tamanho da população. Quanto mais pessoas houver, mais ajuntamento haverá. Quanto mais elas se mudarem para habitats marginais, onde podem contrair doenças antes restritas a outros animais _as febres hemorrágicas no Brasil, por exemplo, vírus hemorrágicos transmitidos por roedores.

Folha - Como o hantavírus.
Ehrlich - Exatamente.

Folha - Por outro lado, as questões sobre população e ambiente foram em parte institucionalizadas e encontraram abrigo em muitas agências nacionais, organismos internacionais e um sem-número de ONGs. As conferências da ONU proliferaram durante os anos 90. O sr. considera que essas questões estão sendo consequentemente abordadas pela comunidade internacional, ou se trata mais de um tipo de burocratização?
Ehrlich - Essas questões estão institucionalizadas e isso é bom, mas eu ainda gostaria de que o público em geral estivesse mais consciente delas, especialmente nos Estados Unidos. Os Estados Unidos são o país mais superpovoado do mundo, mais de um quarto de bilhão de pessoas, e nosso consumo por pessoa é tão alto que o impacto que nós causamos nos sistemas de suporte de vida do mundo é maior do que o de qualquer outra nação.
O mais sério problema populacional do mundo está nos Estados Unidos e, apesar disso, não temos uma política governamental oficial para isso, não é reconhecido pela maioria de nossos governantes. Provavelmente temos a mais fraca e mais estúpida legislatura desde 1875, mais de cem anos que não tínhamos tantas pessoas burras e ignorantes no Congresso.
Não acho que as questões estejam sendo corretamente enfrentadas pela comunidade internacional, tampouco.
Quando “A Bomba da População” foi escrito, eu e outros não sabíamos como baixar a taxa de fertilidade, não sabíamos se poderia ser feito. Mas agora sabemos, por exemplo, que educar mulheres, dar-lhes oportunidades de emprego, tornar contraceptivos disponíveis etc. pode alterar comportamentos dramaticamente. Se tivéssemos um esforço internacional em torno disso, poderíamos derrubar a taxa muito mais rápido.

Folha - Fomes causadas pelo crescimento da população constituíam o grande terror. Nas últimas décadas o tema “ambiente” parece ter substituído “comida” como fonte principal de preocupação.
Ehrlich - Nós estávamos equivocados sobre a forma que a fome assumiria. Os agriculturalistas achavam que lugares como a Índia teriam fome generalizada. O que aconteceu foi que uma parte grande da humanidade ainda sobrevive com comida insuficiente e tivemos alguma coisa da ordem de 250 milhões a 300 milhões de pessoas mortas de fome desde que “A Bomba da População” foi escrito.
Evitamos fomes gigantescas, mas foi em grande medida porque nos dedicamos a um sistema agrícola insustentável, que agora está ameaçado não só por coisas como pragas ressurgentes e terras irrigadas saindo de produção (por causa de salinização), mas também pelo espectro da mudança climática global, que pode arruinar o sistema rapidamente.
Os preços baixos das commodities agrícolas no momento devem ser atribuídos não tanto ao fato de que todos têm o suficiente para comer, porque não têm, mas à crise na demanda dos tigres asiáticos, que têm mais e mais problemas econômicos. A produção de grãos, por algum tempo, estava sendo empregada para alimentar animais, para a transição para o consumo de carne nos países asiáticos, dramática. Eles estavam importando muito grão, agora não estão mais, o que derrubou os preços agrícolas. Eu e meus amigos na economia agrícola pensamos que é estúpido considerar que estamos seguros em matéria de comida.

Folha
- A produção de alimentos tem crescido pelo menos tão rapidamente quanto a população, tanto que os preços vêm caindo e a disponibilidade per capita até aumentou um pouco. Distribuição e acesso, não volume de produção, são tidos como a causa da fome que grassa em países da África, por exemplo. O que se pode fazer?
Ehrlich - Antes de mais nada, o que sua questão não menciona é que, embora a produção de comida tenha crescido mais rápido que a população nos últimos 50 anos, isso não tem acontecido na última década. O crescimento per capita foi se reduzindo até o ponto em que estamos agora marcando passo, dependendo do ano.
Cultivar comida é a mais importante atividade humana, isoladamente, mas no entanto a maior parte das pessoas nos Estados Unidos não sabe de onde vem sua comida. Havia um professor de ciências da computação na Universidade Stanford, a minha instituição, que pensava que o leite era manufaturado, feito numa fábrica. Talvez nossos parlamentares tenham a mesma noção.

Folha - Quem sabe leite de soja...
Ehrlich - Não (ri), antes fosse.
Estamos perdendo aqui nos Estados Unidos, por exemplo, os (insetos) polinizadores da agricultura. Nosso grupo tem realizado muitos trabalhos sobre como manter os serviços do ecossistema em áreas degradadas. Um de meus colegas está tocando um projeto na Costa Rica para quantificar, avaliar a capacidade de áreas degradadas para manter polinizadores e predadores naturais, para sustentar um sistema agrícola em produção. É o tipo de pesquisa que precisamos fazer, muito mais.
Temos de plantar mais comida porque estamos condenados a alimentar mais pessoas. E a agricultura é provavelmente a mais destrutiva das forças exercidas sobre o sistema de manutenção da vida.
Há muitas coisas para fazer na agricultura, assim como há muito para fazer em relação à população. A questão é: como se faz para obter a vontade social e política para realizá-las? E dos três fatores que se somam e multiplicam para causar problemas ambientais _tamanho da população, consumo per capita e o tipo de tecnologia e de organizações sociais que sustentam esse consumo_ o mais difícil de enfrentar é o do excesso de consumo.
Um dos problemas é que o padrão de bem-estar está relacionado com sua posição relativa a outras pessoas. O que acontece com a globalização da mídia é que as pessoas estão comparando sua posição com gente como Bill Gates.

Folha - O sr. considera que a água potável pode tornar-se o fator limitante para a produção de comida e, portanto, para o crescimento populacional?
Ehrlich - Escrevi um trabalho sobre água doce como o fator limitante. Muitos pesquisadores de ciências da Terra acham que aí é que a coisa vai parar, porque já estamos consumindo mais ou menos a metade do fluxo disponível, e mais que isso em muitas regiões.
O problema mais agudo vai depender de termos sorte com o clima. Ninguém sabe o que vai acontecer. Se tivermos azar, esse pode se tornar o grande problema. Água é a outra grande incógnita, pois depende de nossa sagacidade ao usá- la. E, claro, as doenças.
Não há razão alguma para acreditar que Aids vai ser a última dessas novas doenças. Estamos nos arranjando essa população enorme, rápidos meios de transportes, abusamos de antibióticos, espalhando resistência, e não estamos financiando suficientemente sistemas de saúde pública nos Estados Unidos e em outros lugares. Tudo está nos encaminhando para uma má situação. Se tivermos outra gripe equivalente à de 1918, poderia facilmente matar 1 bilhão de pessoas e desarticular a sociedade.

Folha - Na sua opinião, portanto, existem ingredientes suficientes para reviver temores milenares, de fim dos tempos?
Ehrlich - Podem ser revividos, mas ao mesmo tempo temos a capacidade de reduzir muito dramaticamente as chances de catástrofe. Sou pessimista sobre o que vamos fazer, mas bem otimista quanto ao que podemos fazer. A questão é saber como fazer as pessoas darem atenção a esses problemas, em lugar de Monica Lewinsky.

Folha - O sr. acha que é possível alterar o que se chama de capacidade de suporte da Terra? É uma grandeza variável ou fixa?
Ehrlich - Acredito que possa ser mudada, dependendo de como você se comporta. A capacidade de suporte do planeta seria aumentada se todos se tornassem predominantemente vegetarianos.
Por outro lado, nossos estudos do que seria um tamanho de população ótimo, quando se considera não só quantas pessoas você pode manter, no longo prazo, mas também o tipo de vida que vão levar, os números ficam em geral entre 1 bilhão e 2 bilhões. Isso nos daria o bastante para ter grandes cidades ativas, espaço de manobra contra catástrofes e natureza bastante para quem quiser se isolar.
O que é claro como água é que estamos além da marca, além da capacidade de suporte do planeta para pessoas que se comportem como nos comportamos hoje, usando a tecnologia que usamos.
É fácil de ver isso, porque não conseguimos viver com nossa renda. Só damos conta de sustentar 6 bilhões de pessoas porque estamos esgotando nosso capital, não particularmente carvão e óleo, mas solos ricos para agricultura, água subterrânea, plantas, animais e microrganismos que sustentam nosso sistema de vida _tudo isso está desaparecendo rapidamente.



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