São Paulo, Sexta-feira, 2 de Julho de 1999




6 bilhões de pessoas.
Será demais?


Teóricos crêem que a Terra está próxima do máximo de habitantes que pode alimentar, mas não há consenso; na agricultura, uso de água supera taxa de reposição

MARCELO LEITE
especial para a Folha

Supondo que você leia este texto até o fim e que isso leve três minutos, haverá umas 450 pessoas a mais sobre a Terra quando terminar. Nesse ritmo de mais de duas pessoas por segundo, em 12 de outubro o planeta contará com 6 bilhões de habitantes.
O cálculo parte da agência de população da Organização das Nações Unidas. A contagem regressiva oficial para o Dia dos 6 Bilhões começa daqui a 2,16 milhões de pessoas, no Dia da População Mundial (11 de julho). É tanta gente que a ONU arranjou logo duas datas para marcar a ultrapassagem de mais
um bilhão.

Evolução da População Mundial
População Ano Tempo decorrido entre
uma marca e outra
1 bilhão 1804 ---
2 bilhão 1927 123 anos
3 bilhão 1960 33 anos
4 bilhão 1974 14 anos
5 bilhão 1987 13 anos


Estimativa de Crescimento da População Mundial
População Ano Tempo provável entre
uma marca e outra
6 bilhões 1999 12 anos
7 bilhões 2013 14 anos
8 bilhões 2028 15 anos
9 bilhões 2054 26 anos
Fonte: Divisão de População da ONU, Prospectos sobre População Mundial:  Revisão de 1998

O crescimento populacional de hoje não tem precedentes. Se a humanidade tivesse procriado sempre com tamanho afinco (1,33% ao ano), ela teria surgido apenas seis séculos antes de Cristo, calcula Joel Cohen, do Laboratório de Populações das universidades Rockefeller e Columbia (EUA).
Thomas Robert Malthus (1766-1834) deve estar dando voltas na tumba. Há 201 anos, escreveu “Um Ensaio sobre o Princípio da População”. O livro abriu um dos debates mais perenes de todos os tempos: há limites, afinal, para a população que a Terra pode alimentar?
Malthus não tinha dúvida de que a fronteira existia e seria ultrapassada, pois a população tende a crescer mais rápido que a produção de comida: “O poder da população é indefinidamente maior que o poder da terra de produzir subsistência para o homem”.
Como “a paixão entre os sexos é necessária”, segundo Malthus a população teria de ser corrigida de tempos em tempos por meio de fome, miséria e guerra. Como um vírus, a idéia foi capaz de sobreviver até o mundo de hoje, em que as taxas de fertilidade caem e cresce a produção de alimentos.
A partir de 1965-70, a taxa de crescimento populacional deixou de subir. A população continua a aumentar, porém mais devagar. Só na última revisão (dezembro de 1998), a ONU retirou meio bilhão de pessoas do que era projetado para 2050 (agora, 8,9 bilhões).
Há, no entanto, cerca de 1 bilhão de pessoas na idade de procriar. Isso garante um impulso que demógrafos chamam de “momentum”, tomando da física o conceito de quantidade de movimento.

CAPACIDADE DE SUPORTE
Para intuir a atualidade de Malthus, basta substituir “comida” por “recursos naturais”, a partir dos anos 60. Até mesmo um termo tão recente quanto “capacidade de suporte” (de populações por ecossistemas), gêmeo do “desenvolvimento sustentável” dos anos 90, soa obviamente malthusiano.
Também malthusiano, o biólogo Paul Ehrlich escreveu “A Bomba da População”, em 1968. Essa bíblia do alarmismo vendeu 9 milhões de cópias.
Pessimista provou-se, ainda, “Os Limites para o Crescimento”, estudo feito em 1972 por Dennis e Donella Meadows para o Clube de Roma. Seus modelos matemáticos em computador, grande inovação na época, regurgitaram profecias catastróficas para o próximo século. A explosão populacional levaria necessariamente a um colapso de recursos naturais.
Tão ou mais velho que o pessimismo é seu contrário. O próprio Malthus escreveu para polemizar com os otimistas de seu tempo, como Marie-Jean-Antoine-Nicolas Caritat, o marquês de Condorcet (1743-1794).
O economista Julian Simon propôs uma aposta a Paul Ehrlich em 1980: uma cesta com cinco metais da escolha de Ehrlich, no valor de US$ 1 mil, estaria custando menos em dez anos (sinal de que a escassez prevista não ocorreria). Quem errasse pagaria o valor da variação nos preços. Eles caíram e Ehrlich fez um cheque de US$ 567,07.
Simon morreu no final do ano passado, muito menos famoso do que Ehrlich. Seus mais destacados seguidores seriam hoje os que apontam a biotecnologia como a nova Revolução Verde.
Não é preciso ser malthusiano para perceber que transgênicos são solução para um problema inexistente. A fome já chegou, mas está restrita a focos de pobreza crônica, como a África. É problema de distribuição, não de volume.
A engenharia genética também não tem o poder de aumentar o estoque físico de água doce do planeta, principal limitação da agricultura. A irrigação consome 70% da água usada pelo homem, que retira dos aquíferos (lençóis profundos) mais do que a natureza repõe. Na Índia, por exemplo, isso pode reduzir em até 25% a produção de grãos nas próximas décadas, segundo a organização Worldwatch Institute (EUA).
Outro problema que a tecnologia terá dificuldade para resolver é o do efeito estufa (aquecimento global), potencializado pelo gás carbônico (CO2) produzido com a queima de combustíveis fósseis, sobretudo petróleo e carvão. Mesmo que ocorra uma transição sem sobressaltos para uma matriz energética baseada no gás natural, em 50 anos, ou para o trinômio sol/ventos/hidrogênio, em 100, o CO2 já emitido vai continuar afetando o clima por muitas décadas.

CONFLITO NORTE-SUL
Escala planetária e complexidade são as marcas características dos debates internacionais sobre a relação entre desenvolvimento econômico, crescimento populacional e recursos naturais.
Nos anos 90, proliferaram agências e conferências da ONU, assim como ONGs especializadas em ambiente. Toda essa superestrutura burocrática não foi capaz, ainda, de gerar muitos resultados concretos. O processo de negociação tem emperrado no abismo entre padrões de consumo do “Norte” (países ricos) e do “Sul” (pobres).
A China, por exemplo, logo estará emitindo tanto CO2 quanto os EUA, mas na conta per capita a distância é maior que entre Pequim e Washington. Por isso não progride o Protocolo de Kyoto, assinado há um ano e meio, que estipula redução de gases-estufa.
Segundo Joel Cohen, 55, que lançou em 1995 o livro “How Many People Can the Earth Support?” (“Quantas Pessoas a Terra Pode Sustentar?”, W.W.Norton, US$ 14,95), a questão da equidade é central para definir o máximo sustentável de população.
No histórico que traçou das estimativas desde 1679 (13,4 bilhões de pessoas), encontrou números disparatados, até mesmo 1 trilhão (1978). Os valores mais frequentes ficam entre 4 bilhões e 16 bilhões.
Para Cohen, a questão é cultural e política. Envolve valores e não cifras: “Não posso adivinhar se os filhos de meus filhos vão querer dirigir um automóvel, ou ter iate”, afirmou à Folha.
“Se todos tiverem uma dieta norte-americana, só se consegue alimentar um terço da população atual”, disse Paul Ehrlich, 67, em entrevista por telefone. Para ele, o melhor para a Terra seria entre 1 bilhão e 2 bilhões de habitantes.
Cohen lembra que há cem anos se dizia que os EUA não poderiam ter 200 milhões de habitantes, pois as ruas seriam cobertas com esterco de cavalos. A tecnologia evoluiu para carros, mas o problema agora é o “esterco dos carros” no ar.
Ele recusa definir-se como otimista ou pessimista: “Quando eu atravesso a Quinta Avenida, não sou nem otimista nem pessimista. Se fosse otimista, fecharia os olhos e atravessaria _seria morto. Se pessimista, ficaria com medo até de tentar atravessar. O que faço é olhar para o trânsito, para o semáforo, em todas as direções, e, com muito cuidado, tento chegar do outro lado da rua”.
No livro, ele indica uma cidade para ser olhada com muito cuidado: São Paulo.




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