São Paulo, Sexta-feira, 2 de Julho de 1999




Revolução transgênica fica
na promessa


Apesar do desenvolvimento de plantas resistentes aos herbicidas, o desgaste dos solos e o elevado consumo de água colocam agricultura no rumo da insustentabilidade

especial para a Folha

Para defensores da biotecnologia, alimentos transgênicos são a salvação da lavoura. Para seus detratores, podem ser a praga definitiva do capitalismo globalizado e insustentável. Talvez a verdade esteja no meio, mas o fato é que a tecnologia não pode ainda cumprir nem metade de sua promessa: acabar com a fome do mundo.
18.fev.1999 Associated Press
Soja transgênica despejada em frente à residência do primeiro-ministro britânico Tony Blair, que autorizou o consumo de transgênicos; nova técnica melhora cultivo, mas causa polêmica

O mais célebre produto da engenharia genética, uma variedade de soja resistente a herbicida, ainda está “sub judice” no Brasil. Depois de aprovada pelo governo federal, foi acionada na Justiça por organizações não-governamentais, que apontam nela riscos para a saúde humana e para o meio ambiente.
Há duas semanas, um juiz federal concedeu liminar para as ONGs, impedindo o plantio em escala comercial da soja alterada. A sentença determina realização de estudo de impacto ambiental.
A soja resistente ao herbicida Roundup (nome genérico: glifosato) resulta em ganho máximo de 5% na produtividade. O suficiente para pôr agricultores feito loucos atrás dela (já ocupa 55% da área plantada nos EUA), mas não para dar alimentos a todos no mundo. E muito menos para convencer as pessoas comuns de que assistem ao advento de uma revolução e não de um apocalipse genético.
Como não é a quantidade, mas a distribuição que impede a erradicação da fome, os transgênicos são prescritos contra uma doença que não irrompeu _ainda.
A perda contínua de solos e seus nutrientes, assim como o consumo de água para irrigação acima da capacidade de reposição natural dos lençóis, põe a agricultura de hoje na trilha da insustentabilidade.
“Precisamos prestar muito mais atenção à sustentabilidade do sistema agrícola, como fazer para que não aniquile os serviços do ecossistema do qual dependemos”, alerta o biólogo Paul Ehrlich, referindo-se à recarga de mananciais e à formação de solos férteis. Ehrlich, da Universidade Stanford (EUA), é o autor de “A Bomba da População” (1968).
O crescimento populacional mundial, apesar de desacelerado, de todo modo ainda adiciona 80 milhões de bocas à demanda por comida, todos os anos. Elas terão de ser sustentadas com a mesma quantidade de terra, porque a superfície agricultável do planeta está deixando de crescer _o que se ganha com abertura de áreas se perde com erosão e salinização.
Nesse ritmo, a densidade média poderá alcançar uma pessoa por hectare nos países subdesenvolvidos, ou um estômago por terreno comparável a um campo de futebol oficial. Só que a maioria delas amontoadas em megalópoles capazes de engolir 6 mil toneladas de comida por dia, quando alcançam 10 milhões de habitantes.
Por outro lado, parece estar quase esgotado o limite biológico de melhoramento de plantas. Num colóquio da Academia Nacional de Ciências dos EUA, em dezembro passado, o agrônomo Kenneth Cassman, da Universidade de Nebraska, afirmou que a colheita de arroz e milho _2 dos 3 grãos mais importantes na alimentação mundial_ já materializa 80% do potencial desses vegetais.

RESISTÊNCIA À SECA
A única tecnologia com potencial à altura do desafio, aparentemente, é a dos transgênicos. Mas mesmo seus militantes empresariais acrescentam um grão de sal à mistura milagrosa: “A tecnologia em si mesma não é toda a solução”, diz Robert Bruce Horsch, que dirige a área de desenvolvimento sustentável da Monsanto, multinacional identificada com os transgênicos.
Com ele concorda Paul Ehrlich: “Não existe ‘a’ solução. Muitas tecnologias podem ajudar, mas não há sinais de que tenham grande impacto nos três grãos principais _milho, trigo e arroz”.
E também Joel Cohen, do Laboratório de Populações das universidades Rockefeller e Columbia: “Poderia ser parte de uma solução mais ampla, mas certamente (a engenharia genética) não é por ela mesma um fator suficiente”.
Para entregar o que promete, a biotecnologia teria de apresentar plantas resistentes a solos pobres, áridos, salinizados e tóxicos. E alimentos mais nutritivos, ou mesmo terapêuticos (como um óleo que reduza o colesterol, ainda em estágio embrionário de pesquisa).
Esses alimentos já têm nome, “nutracêuticos”, mas, nas prateleiras, o que se encontra são vegetais resistentes a herbicidas e insetos, que só beneficiam produtores e que consumidores encaram com crescente desconfiança.
O debate público sobre o fundamento desse temor tem gerado mais calor do que luz, em particular na Europa, que passa por um pânico alimentar após o outro (da vaca louca à dioxina no frango).
Nos EUA, a discussão é marginal. Mas os plantadores começam a sentir o peso da “irracionalidade” do mercado europeu. No caso do milho geneticamente modificado, estima-se que a área cultivada possa cair dos atuais 30% do total.
“As empresas e os cientistas estão cometendo os mesmos erros que as empresas de energia nuclear, nos EUA. Em vez de fazer testes tranquilizadores antes de ir ao mercado, estão correndo direto para ele e depois ficam surpresos quando as pessoas dizem: espere aí, como é que eu vou saber se essa coisa é segura?” _diz Joel Cohen, que organiza para o Banco Mundial um simpósio sobre o tema, em outubro. (MARCELO LEITE)



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