São Paulo, Sexta-feira, 2 de Julho de 1999




Escassez pode levar a guerra


Baixa disponibilidade do recurso e consumo elevado devido à superpopulação causam conflitos entre países e pessoas; Oriente Médio é região onde o problema poderá ser maior

RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

Tentar cortar o suprimento de água do inimigo sempre foi uma das táticas comuns nas guerras desde a Antiguidade, notadamente nos cercos a cidades e fortalezas. A própria guerra química e biológica tem origem nas tentativas de envenenar a água do adversário.
Mas um episódio ocorrido no Oriente Médio em 1964 envolvendo o acesso à água pode ser considerado pioneiro de um tipo de conflito que poderá ser mais comum no futuro à medida que o mais vital dos recursos naturais se tornar cada vez mais escasso.
Naquele ano, israelenses, sírios e libaneses trocaram tiros em torno de obras que estavam sendo feitas pelos árabes para desviar o rio Jordão. As obras eram constituídas por um canal que levaria as águas de dois afluentes do Jordão _os rios Hazbani (Líbano) e Banias (Síria)_ para o rio Yarmuk (Jordânia). Como o desvio faria Israel perder dois terços dessa fonte de água, a obra foi bombardeada. A escalada no conflito fez os sírios desistirem do projeto.
O tema sempre preocupou o país. Estudo de 87 indicava que Israel poderia iniciar o ano 2000 com um déficit de até 0,3 km3 por ano, para um consumo de 1,5 a 2 km3. A estimativa dependeria do crescimento populacional e da capacidade de reciclagem, estimada em até 1,5 km3/ano, segundo o pesquisador israelense Hillel Shuval.
Programas de reciclagem têm diminuído o impacto da escassez em Israel. Mas o fluxo de imigrantes e o crescimento percentual relativamente maior da população palestina tornaram o tema um dos panos de fundo mais importantes das negociações de paz na região. O crucial rio Jordão é justamente a fronteira entre a Cisjordânia ocupada pelos israelenses, e onde os palestinos querem construir seu Estado, e a Jordânia, à qual a região pertencia até ser tomada por Israel em 67.

FIM EM 40 ANOS
Em março passado foi divulgado o primeiro estudo internacional sobre a água da região, o primeiro envolvendo israelenses, palestinos e jordanianos, além de americanos. Os números não deixam margem para desperdícios. Os pesquisadores estimam que em 40 anos toda a água doce na região terá de ser usada para consumo doméstico, reservando para agricultura e indústria (os maiores usuários) a água tratada de esgotos.
Há também um desequilíbrio regional no consumo que poderá diminuir com o maior desenvolvimento dos vizinhos de Israel. Mas, ironicamente, criando maior demanda. Dados de 94 indicam que um israelense consome 344 m3/ano de água, contra 93 de um palestino da Cisjordânia ou da Faixa de Gaza, e 244 de um jordaniano.
O problema afeta boa parte do Oriente Médio. Segundo o pesquisador Jean Margat, dos 11 países ou regiões com menor disponibilidade de água no mundo, oito estão no Oriente Médio _Kuait, Qatar, Faixa de Gaza, Arábia Saudita, Líbia, Bahrein, Jordânia e Emirados Árabes Unidos.
Mas a falta de água pode afetar mesmo países com maior disponibilidade do líquido _basta ter dificuldade de acesso aos recursos ou uma grande população.
Canadá e China, por exemplo, recebem quantidades parecidas de água das chuvas, mas a enorme população chinesa torna a disponibilidade per capita bem menor (um chinês tem apenas 2,3% do total disponível a um canadense).
A também populosa Índia vive situação parecida de escassez relativa, o que pode levar a desentendimentos com o vizinho Bangladesh pelas águas da bacia dos rio Ganges e Brahmaputra. E o próprio Brasil viveu momentos tensos com a Argentina nos anos 70 devido ao uso das águas da bacia platina para produzir eletricidade.



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