Leia trecho do livro que inspirou o filme "Foi Apenas um Sonho"
Um dos mais poderosos romances da literatura norte-americana do século 20, "Foi Apenas um Sonho - Rua da Revolução" (Alfaguara), de Richard Yates, pode ser agora descoberto pelo leitor brasileiro. Em nova edição, lançada para acompanhar o lançamento do filme homônimo estrelado por Leonardo DiCaprio e Kate Winslet, o romance acompanha a vida de Frank e April Wheeler, um casal jovem, charmoso, bonito e irreverente. Ambos se consideram especiais e desejam viver suas vidas em plenitude. Acreditam que estão destinados à grandeza, a terem vidas melhores do que seus vizinhos e colegas de trabalho. Mas os anos passam e ambos percebem que algo está errado.
O filme concorre ao Oscar melhor ator coadjuvante, melhor direção de arte e melhor figurino.
Leia abaixo trecho do livro.
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Um
Divulgação |
Livro inspirou filme estrelado por Leonardo DiCaprio e Kate Winslet |
Os sons finais e agonizantes do ensaio geral deixaram os atores do Grupo de Teatro Laurel sem mais o que fazer senão ficar ali, calados e imóveis, piscando os olhos diante das luzes do palco e do auditório vazio. Mal ousavam respirar, enquanto a figura diminuta e solene do diretor emergia dentre os assentos desocupados para se juntar à trupe no palco, arrastando uma escada dos bastidores e subindo alguns degraus para dizer-lhes, pigarreando várias vezes, que eram um grupo supertalentoso, um grupo maravilhoso com o qual se trabalhar.
- O trabalho não tem sido fácil - ele disse, os óculos cintilando sobriamente pelo palco. - Tivemos muitos problemas e, francamente, eu já tinha até me conformado em não esperar demais. Mas ouçam bem; talvez seja piegas dizer isso, mas algo aconteceu aqui esta noite. Hoje, sentado ali, de repente eu percebi que vocês todos estavam se entregando ao trabalho com todo o coração pela primeira vez.
Espalmou os dedos de uma das mãos sobre o bolso da camisa, para mostrar como o coração era algo simples, físico; em seguida, transformou a mão num punho, sacudido lentamente, em silêncio, em meio a uma pausa longa e dramática, fechando um dos olhos e deixando o lábio inferior, umedecido, enrugar-se e formar uma careta de triunfo e orgulho.
- Repitam isso amanhã à noite - ele disse - e teremos uma baita apresentação.
Quase choraram de alívio. Em vez disso, trêmulos, aplaudiram, riram e trocaram apertos de mão e beijos, alguém saiu para comprar uma caixa de cerveja e cantaram em volta do piano que havia no auditório até que chegou a hora, segundo o consenso geral, de parar e ter uma boa noite de sono.
- Até amanhã! - exclamaram, felizes como crianças, e a caminho de casa, sob a luz da lua, abriram as janelas dos carros e deixaram que o ar entrasse com os aromas saudáveis da terra e dos brotos das flores. Era a primeira vez que muitos dos integrantes do Grupo de Teatro Laurel se permitiam constatar a chegada da primavera.
Corria o ano de 1955 e o local era uma região a oeste de Connecticut, onde três vilarejos inchados tinham sido unidos por uma rodovia larga e barulhenta chamada Rota 12. O Grupo Laurel era uma trupe amadora, ainda que dispendiosa, e era séria, criteriosamente recrutada entre os jovens adultos dos três vilarejos, e aquela seria a sua primeira produção. Reunidos durante todo o inverno nas salas de estar de residências de membros do grupo, onde discutiam Ibsen, Shaw e O'Neill, e onde a maioria sensata elegeu A floresta petrificada, e onde mais tarde escolheram os papéis, os integrantes da trupe sentiam que o seu comprometimento ficava mais forte a cada semana. Na intimidade talvez considerassem o diretor um homenzinho cômico (e era, de certo modo: parecia incapaz de falar de outra maneira, senão com total seriedade, e muitas vezes concluía um comentário com um leve meneio de cabeça que lhe fazia tremer as bochechas), mas gostavam dele e o respeitavam, e acreditavam piamente na maioria das coisas que ele dizia. "Qualquer peça merece o melhor que o ator pode dar", disse a eles uma vez, e em outra ocasião afirmara: "Lembrem-se disso: não estamos apenas montando uma peça. Estamos criando um teatro comunitário e isso é muito importante."
O problema era que desde o começo tinham receio de passar por tolos, e o temor se tornara mais forte porque receavam admiti-lo. A princípio, os ensaios eram realizados aos sábados
- sempre, ao que parecia, naquelas tardes sem vento, típicas de fevereiro ou março, quando o céu está branco, as árvores negras, os campos amarronzados e as colinas da terra jazem desnudas e delicadas entre coalhadas de neve engelhada. Os atores, saindo de casa pela porta da cozinha e hesitando um instante ao abotoar o casaco ou calçar as luvas, contemplavam uma paisagem na qual se encaixavam apenas algumas casas antigas e dilapidadas; a visão fazia com que as casas deles próprios parecessem frágeis e efêmeras, futilmente dispostas como brinquedos novos e coloridos deixados ao relento, na chuva. Tampouco os carros tinham aspecto adequado - grandes demais e reluzentes, em tons de confeitos e sorvete, parecendo se assustar com cada respingo de lama, arrastavam-se encabulados pelas estradas que, vindas de todas as direções, davam acesso ao pavimento chapado e profundo da Rota 12. Uma vez na rodovia ficavam tranqüilos, em seu ambiente natural, um vale extenso e luminoso, de plástico e vidro colorido e aço inoxidável - KING KONE, MOBILGAS, SHOPORAMA, RESTAURANTE -, mas eram obrigados a sair da auto-estrada, um por um, e subir pela tortuosa vicinal que levava ao prédio da escola secundária; eram obrigados a parar no plácido estacionamento em frente ao auditório da escola.
- Oi! - os atores se saudavam, timidamente.
- Oi!... Oi!... - e entravam, hesitantes.
Pisando duro com suas galochas pelo palco, assoando o nariz com Kleenex e franzindo o cenho diante da impressão ruim dos roteiros, finalmente quebravam o gelo com gargalhadas benevolentes e estrepitosas, e concordavam, repetidas vezes, que haveria tempo suficiente para aparar as arestas. Mas não haveria tempo suficiente, todos sabiam disso, e a constante aceleração do ritmo de ensaios só servia para piorar a situação. Muito tempo depois do prazo estipulado pelo diretor para "fazer a coisa decolar, fazer a coisa acontecer", tudo continuava estático, amorfo, um fardo cujo peso era desumano; por vezes, os atores liam a promessa de fracasso nos olhos dos colegas, nos acenos e sorrisos de desculpas das despedidas, e na pressa convulsiva com que seguiam para os carros e iam para casa ao encontro de promessas anteriores e menos explícitas de fracasso que porventura estivessem à sua espera.
E agora, naquela noite, faltando apenas vinte e quatro horas, eles tinham conseguido fazer a coisa funcionar. Inebriados com a sensação estranha da maquiagem e do figurino, naquela primeira noite cálida do ano, esqueceram o temor: deixaram-se levar pelo movimento da peça, quebrando como uma onda; talvez fosse pieguice (e daí que fosse?), mas todos tinham se dedicado ao trabalho, de coração. Alguém poderia desejar mais do que isso?
"Foi Apenas um Sonho"
Autor: Richard Yates
Editora: Alfaguara
Páginas: 306
Quanto: R$ 39,90
Onde comprar: na Livraria da Folha
Livraria da Folha
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