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Eventos recentes suscitam polêmicas sobre apropriação cultural e religiosa

Popularização da festa de Iemanjá e imagens de Donata Meirelles foram alguns episódios que geraram discussões

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‘Ntozakhe II, Parktown, Johannesburg’, fotografia de Zanele Muholi
‘Ntozakhe II, Parktown, Johannesburg’, fotografia de Zanele Muholi - Yancey Richardson Gallery/Divulgação
São Paulo

No lugar dos tradicionais banhos de alfazema, as oferendas mais jogadas no mar da orla do Rio Vermelho, em Salvador, foram latas de cerveja. O 2 de fevereiro, dia de Iemanjá, a rainha dos mares, ganhou contornos de micareta com direito a baladas VIP em hotéis de luxo e turistas trajados de azul e branco com colar de contas enrolado no pescoço.

As redes sociais expuseram o passo a passo do cortejo, ou "vibe", como definiu um internauta, que a prefeitura local classificou pela primeira vez como "festa popular", apagando o nome da orixá do candomblé nos cartazes publicitários.

Esse é mais um exemplo de celebração religiosa apropriada pelo país do Carnaval, algo similar com o que aconteceu com o Círio de Nazaré, celebração cristã no Pará, e o São João, que, apesar da origem pagã, foi adotado pelo catolicismo como dia do santo.

Na visão da comunidade negra, porém, tanto uma suposta profanação, adjetivo usado por religiosos para definir o desbunde da turma que foi só pelo "all inclusive" com vodca e feijoada, quanto o apagamento do nome de Iemanjá são sintomas da apropriação cultural e religiosa no país.

Esses conceitos mudariam todas as esferas da convivência entre brancos e negros sob o slogan do somos todos brasileiros, uma "democracia racial que nunca existiu", como define a escritora e ativista Djamila Ribeiro, autora de "O que É Lugar de Fala?".

Na opinião dela, a supressão de Iemanjá e o racismo convergem, por exemplo, em expressões como "chuta que é macumba" usada para expurgar algo considerado negativo.

Mãe de santo, Iyá Karem pisou na festa pela primeira vez neste mês e, quando viu o mar de gente, pensou que "esse negócio de intolerância não existe no Brasil". Mas lembrou que, menos de um mês antes, seis homens invadiram um terreiro em Camaçari, na região metropolitana de Salvador, para roubar, bater no pai de santo e dizer que todos ali eram demônios, segundo relatos de testemunhas.

"O Brasil vive uma intolerância enrustida de pessoas que usam branco no Réveillon e um dia foram crianças que buscavam doces na festa de Cosme e Damião [as tradições têm origem na umbanda e no candomblé]", diz.

Segundo Djamila Ribeiro há um processo de apropriação dessas religiões, conduzida por uma elite que vê Iemanjá como branca —ou uma entidade sem cor— de cabelos até a cintura.

"Não é uma questão de vetar que brancos participem [da celebração], mas fazer com que a entendam como religião. O Brasil tem essa questão de enaltecer a cultura negra, mas demoniza suas raízes. Você não vê gente usando quipás no Carnaval, mas as pessoas se sentem no direito de usar colar sagrado", diz Ribeiro.

Ironicamente, contas, trajes e coroas fazem parte de um grande negócio para a Bahia, que vende a rodo colares coloridos na rua e põe negras vestindo trajes de baiana para receber turistas.

Foi a acusação de romantizar a herança negra que alimentou uma das polêmicas mais recentes das redes sociais por aqui. A imagem da então diretora da revista Vogue Brasil, Donata Meirelles, sentada numa cadeira em sua festa de 50 anos ladeada por baianas trajadas de branco, foi vista por alguns como referência ao período escravocrata do país, quando sinhás eram servidas por mucamas.

A lembrança do colonialismo baseou protestos de anônimos e celebridades do movimento negro, de Elza Soares à rapper Preta Rara. Para eles, o episódio reproduziria de maneira enviesada memórias dolorosas da escravidão e a manutenção da hierarquia de raças.

A fotografia correu o mundo, motivou um pedido de desculpas de Donata —que disse, em comunicado, não ter feito uma festa temática e que sua cadeira não era de sinhá, mas sim do candomblé—, a abertura de um fórum formado por pensadores negros com o intuito de formular ações e pautas de inclusão racial na revista e uma nota de esclarecimento da Vogue, que decidiu também adiar seu tradicional baile de Carnaval.

Não foi o suficiente para mitigar a celeuma, que culminou no pedido de demissão da diretora nesta semana. Procurada pela Folha, Donata não quis se manifestar.

O babalorixá Bill de Oxóssi tem uma opinião diferente das pessoas que a criticaram. "Não vejo racismo ali", diz. "Por causa do próprio racismo, quando as pessoas veem uma mulher branca ao lado de várias mulheres negras, elas tendem a interpretar aquilo como racismo", diz. "A ignorância é o que leva a uma interpretação errada", completa.

O economista e filósofo Joel Pinheiro da Fonseca, colunista deste jornal, aponta também para a interpretação enviesada de registros de uma situação —fotografias, áudios, vídeos. "As pessoas hoje basicamente interagem com a realidade nos moldes das redes sociais, procurando motivos simbólicos para se indignar", diz.

"Corta-se uma foto cujo contexto desconhecem, tiram conclusões e acusam as pessoas sem nenhum impacto positivo para diminuir o racismo no país, pelo contrário, causando impacto negativo, como as baianas indo à polícia", complementa.

As baianas da festa, aliás, não viram racismo e sofreram do mesmo preconceito. Atacadas nas redes, seis delas foram à polícia prestar queixa por agressões que incluíam ameaças e incitações de ódio.

Presidente da associação das baianas de acarajé de Salvador e contratada pelo cerimonial da festa, Rita Ventura dos Santos disse que "chegaram a perguntar quanto a gente cobrava para tomar chibatadas".

De todas as vertentes da cultura, a moda, por sua vocação comercial e o poder de difundir pelas ruas ideias e padrões que podem ferir grupos sociais, esbarra com frequência em episódios como o da festa.

Há três anos, a Maria Filó teve de retirar das lojas uma estampa que reproduzia uma sinhá acompanhada de uma mucama, e, um ano depois, a Farm passou pelo mesmo problema ao vender uma peça estampada com a reprodução de uma cena do período colonial, na qual escravos e casa grande são pano de fundo.

Neste mês, a italiana Gucci retirou de circulação uma balaclava preta com desenhos de lábios vermelhos, encarada nas redes como referência ao personagem Sambo. Na cultura americana dos séculos 19 e 20, ele servia de caricatura da suposta malandragem e preguiça dos negros, e deu origem ao "black face" adotado no teatro dos Estados Unidos.

Do mesmo problema padeceu a Prada, que no final do ano passado tirou das prateleiras um boneco parecido com um macaco de lábios vermelhos, visto pelas redes sociais como caricatura de Sambo.

Como forma de mostrar comprometimento com a causa, a grife formou nesta semana um conselho para a diversidade e inclusão, conduzido pelo artista Theaster Gates e a cineasta Ava DuVernay, de "Selma". Segundo nota distribuída à imprensa mundial, a Prada apoiará projetos em escolas e na indústria da moda para "elevar vozes de cor".

Sobrou ainda para a cantora Katy Perry, que nem estilista é, mas viu um calçado de sua marca homônima ter de ser tirado às pressas das prateleiras sob a mesma acusação de reproduzir o "blackface".

Na cultura pop e nas artes visuais, nomes como Childish Gambino, rapper americano premiado no último Grammy, e Gates, agora do conselho da Prada, além de outros artistas, como a sul-africana Zanele Muholi e os brasileiros Moisés Patrício e Paulo Nazareth, entre outros, levaram essas questões para o cerne de seus trabalhos artísticos.

O ponto nevrálgico da discussão, no caso do Brasil, é a naturalização das cenas do colonialismo e da escravidão. Segundo a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, ela é sintoma da "grande perversidade do racismo no país em querer fazer as pazes com o passado sem trazer a carga de violência escondida na história".

"Há uma deformação da hierarquia racial, que transmite a mensagem de sermos misturados. Há uma catarse de união, mas que não leva a uma mudança efetiva porque se celebra a parte performática num dia, e nos outros do calendário? E no final das contas, o branco está sentado e as outras negras estão de pé, trabalhando. Cria-se, assim, uma invisibilidade, uma cegueira", diz Schwarcz.

Essa romantização e a passada de borracha na história atinge ainda o governo. Num capítulo de um livro distribuído neste ano pelo Ministério da Educação a professores de educação física, autores sugerem um jogo de pega-pega separando alunos entre capitães do mato e escravos. O objetivo, mostra o desenho, é correr da senzala para o quilombo.

"O que impressiona é lançarmos essas cargas de drama sobre o passado, que acabam reproduzindo a noção que tivemos uma escravidão passiva. Em muitos livros e textos, de Camões aos do Padre Vieira, o Brasil transformou um genocídio em missão portuguesa."

Para Djamila Ribeiro, esse tipo de visão legitimada em livros desrespeita as dores do povo negro, e "pior, ainda ensinando isso para crianças".

"Somos a maior nação negra fora do continente africano, com dívidas históricas para as quais ainda se fecha os olhos. O Brasil é desigual porque não enfrenta da maneira certa as desigualdades causadas pelo racismo. Quando não criamos mecanismos de inclusão, acontece isso, de pessoas não entendendo a gravidade do nosso holocausto."

Colaborou Gustavo Fioratti


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jan. de 2018
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