Nova York se arrisca a perder sua alma ao ganhar distrito com a cara de Dubai

Novo bairro, com conceito de condomínio de luxo, terá 16 construções em 2024, quando estará concluído

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Escadarias do Vessel, estrutura que interliga as torres do Hudson Yards  Vanessa Carvalho/Folhapress

Nova York

Visto por entre as grades de um canteiro de obras, um anúncio logo na saída da estação Hudson Yards soa como um prelúdio dos novos tempos. "Desafiamos você a fazer tudo isso", diz o cartaz, com a lista de atrações do mais novo bairro nova-iorquino, entre elas lojas e restaurantes, a sua nova casa, um escritório onde importa.

Para a fração ínfima da população à qual grande parte dos serviços ali se destina, é quase uma ilha da fantasia autossuficiente vinda direto dos Emirados Árabes para o extremo oeste de Manhattan.

Com custo de US$ 25 bilhões e planos de ocupar uma gigantesca área de 11 mil hectares quando finalizado, o maior empreendimento imobiliário de uso misto na história americana traz para Nova York o que há de mais artificial e banalizado nos projetos de regiões planejadas das últimas décadas —torres de vidro de superfície espelhada e brilho ofuscante, um shopping com "experiências de compras únicas", o conceito de bairro como um condomínio de luxo.

A cidade que já foi definida pelo arquiteto Rem Koolhaas no livro "Nova York Delirante" como a pedra de Roseta do século 20, um laboratório de experimentos da vida na metrópole, agora parece importar ideias já ultrapassadas e às quais sempre resistiu.

O desafio lançado pela propaganda soa também como recado a quem duvidava que o plano ambicioso fosse mesmo acontecer. Outros megaprojetos ali não avançaram ou nunca saíram do papel.

Visitantes e seus reflexos nas escadarias do Vessel diante da cobertura translúcida do The Shed no novo bairro Hudson Yards, em Nova York  - Mark Wickens/The New York Times

Anunciado há 14 anos, o novo bairro terá 16 construções quando concluído, em 2024. Serão 12 torres comerciais e residenciais, assinadas por "starchitects" como o britânico Norman Foster, o canadense Frank Gehry e o espanhol Santiago Calatrava, com cerca de 10% de aluguel social entre os 4.000 apartamentos.

Isso foi exigência do programa de isenção fiscal que custou à cidade cerca de US$ 367 milhões nos últimos dez anos.

O acordo pela privatização da enorme área urbana incluiu também uma parceria para a reforma de estações do metrô e a extensão de uma das linhas da rede, além da construção de uma escola pública.

Mas, perto dos benefícios oferecidos às empresas para transferirem suas sedes para as futuras torres, Hudson Yards acabou sendo apelidado de "bem-estar corporativo ou socialismo para bilionários" por Michael Kimmelman, crítico de arquitetura do jornal The New York Times.

Dois dos principais projetos do complexo com ares de Dubai acabam de ser concluídos. Uma delas é o Vessel, a extravagante escultura espelhada revestida de cobre com 154 escadas labirínticas, e a outra é o centro cultural The Shed, que liga Hudson Yards ao parque suspenso High Line, ambos assinados pelo escritório Diller Scofidio + Renfro, o mesmo por trás do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, obra agora paralisada na praia de Copacabana.

No ano que vem, será inaugurado um observatório suspenso com uma vista de Manhattan a 335 metros de altura —o mais alto do Ocidente e quinto maior do mundo.

Nesse ponto, Hudson Yards parece seguir a tradição do "Manhattanism", a ideia de se superar rumo ao céu. Mas se a experiência de ver a cidade do alto tinha como objetivo a interrupção da vida alienante da metrópole, ao ver a ilha reduzida a seus limites geográficos, essa está longe de ser a sensação de quem sobe as escadas do Vessel.

A obra do designer britânico Thomas Heatherwick é a melhor representação da vocação autocentrada do novo bairro. A vista para o Hudson parece secundária perto das imagens no reflexo da superfície espelhada, chamariz de selfies nos mais diversos ângulos. Na maior parte das imagens vistas no Instagram pela hashtag #thevessel, já com mais de 32 mil publicações, em vez da paisagem ao fundo o que aparece são detalhes dos corredores em zigue-zague e os módulos hexagonais em forma de células.

A estrutura do Vessel é também um exemplo da arquitetura pós-revolução digital, com construções pensadas como imagens em alta resolução e remixadas a partir de alguma forma familiar.

Ou algumas. Embora a inspiração original sejam os poços em degraus indianos, há quem veja desde uma lata de lixo a um churrasco grego.

A algumas quadras dali —se é que é possível seguir essa lógica, já que o novo bairro também subverte a grade ortogonal dos quarteirões de Manhattan e desorientação ali é a palavra-chave— está o The Shed, talvez a única salvaguarda à estética pasteurizada de Hudson Yards.

Na forma de um imenso galpão de 18,5 mil metros quadrados com um teto deslizante que lembra um ninho, o prédio segue o modelo de projetos de infraestrutura, com aspecto provisório e partes reversíveis. Com custo de US$ 475 milhões, o The Shed chega com a pretensão de ser um centro cultural multidisciplinar sem precedentes.

Sua programação é só de obras comissionadas, como uma nova série de pinturas criadas por Gerhard Richter em uma performance assinada com os compositores Steve ReichArvo Pärt.

Nos próximos meses, há grandes nomes como a cantora Björk, em um show dirigido pela cineasta argentina Lucrecia Martel, além de 52 artistas emergentes que vivem em Nova York.

Mesmo com sua aparência mais descolada, que lembra o clima do Chelsea, bairro vizinho que no fim dos anos 1990 transformou a região no maior distrito de galerias do mundo, o The Shed não foge tanto assim da ideia de "império vago da indistinção".

Esse conceito é de outro ensaio de Rem Koolhaas sobre o que chamou de "espaço-lixo", resíduos da modernização que resultaram em uma arquitetura provisória, formas remendadas e um "repertório de reconfigurações".

Talvez ele não imaginasse que esse artigo hoje cairia bem como análise de uma parte de Nova York bem diferente da que ele descreveu quatro décadas atrás.

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