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Entenda como a rede social Letterboxd se transformou em blockbuster na pandemia

Site está abandonando o nicho de cinéfilos e ganhou o mainstream com pico de novos usuários em 2020

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Calum Marsh
The New York Times

No começo da década passada, Matthew Buchanan e Karl von Randow, web designers radicados em Auckland, na Nova Zelândia, estavam em busca de um projeto paralelo.

A empresa deles, um estúdio de web design chamado Cactuslab, desenvolvia sites e apps para diversos clientes, mas eles queriam um projeto que os interessasse pessoalmente, no qual sua equipe pudesse trabalhar quando não estivesse ocupada com outras tarefas.

Sala de cinema fechada para conter o contágio do Covid-19 na Alemanha
Sala de cinema fechada para conter o contágio do Covid-19 na Alemanha - Ina Fassbender/AFP

Buchanan pensou num site de mídia social sobre filmes. Na época, ele usava o Flickr para compartilhar fotos e o Last.fm para compartilhar suas preferências musicais. O IMDb era um banco de dados; não era social em essência. Isso deixava uma lacuna naquele campo. O resultado foi um app e rede de mídia social chamado Letterboxd, que se descreve, corretamente, em seu site como “o Goodreads dos filmes”.

Depois de ser apresentado na conferência online Brooklyn Beta, há dez anos, o Letterboxd logo começou a atrair um grupo modesto mas apaixonado de fãs de cinema, ávidos por registrar seus hábitos de consumo cinematográfico, criar listas de favoritos e escrever e postar resenhas.

No ano passado, porém, o site registrou crescimento explosivo. O Letterboxd viu sua base de usuários praticamente dobrar desde que surgiu a pandemia. Agora o serviço tem mais de 3 milhões de contas, de acordo com a companhia, ante 1,7 milhão neste momento do ano passado.

E não foi só o número de usuários que cresceu, mas o uso. “A atividade por membro cresceu”, disse Buchanan, numa recente entrevista por Zoom. “Todos os nossos indicadores apontam alta.”

A receita do site também cresceu, com publicidade e assinaturas pagas opcionais que dão recursos adicionais aos usuários. A empresa deixou de ser um projeto paralelo de Buchanan e Von Randow, e nos últimos 12 meses eles contrataram diversos empregados de período integral para o projeto.

A pandemia foi desastrosa para a indústria cinematográfica, já que as salas de cinema em geral permaneceram fechadas e filmes de arrecadação potencialmente enorme, como “Tenet”, apresentaram desempenho drasticamente inferior ao previsto.

Mas, para o Letterboxd, todo o tempo adicional que as pessoas passaram em casa foi uma imensa vantagem. “Amamos conversar sobre cinema”, disse Gemma Gracewood, a editora-chefe do Letterboxd. “E estamos conversando muito mais sobre aquilo que amamos, recentemente, porque estamos todos trancados em casa.”

No começo, o Letterboxd atraía principalmente os obcecados por filmes –cinéfilos extremos, devotos das estatísticas e críticos profissionais em busca de um lugar em que publicar todos os seus trabalhos sob o mesmo teto.

Mike D’Angelo, veterano colaborador das revistas Entertainment Weekly e Esquire, usou o Letterboxd a fim de registrar retroativamente, por data, todos os filmes a que já assistiu, desde janeiro de 1992. Além de subir resenhas antigas para a plataforma, ele usa o site como uma espécie de diário para considerações ocasionais.

“Se estou escrevendo uma resenha profissional, meu público é a audiência geral”, ele disse em conversa por telefone. “Já no Letterboxd, não me preocupo com informações obrigatórias no jornalismo, como um resumo da trama. Faço piadas e referências que, para entender, um leitor precisaria de conhecimento bastante aprofundado sobre cinema. É uma forma de escrever muito mais libertadora.”

Essa liberdade confere aos textos do Letterboxd um jeitinho de oeste selvagem. O que chega ao topo da página do site dedicada às resenhas mais populares varia radicalmente. Há memes obscuros, ensaios muito pessoais e tratados abrangentes repletos de jargão pseudoacadêmico.

O leitor encontra avaliações altamente politizadas escritas com zelo feroz. “Como ação mais destrutiva no planeta, como fonte de mais guerras, mortes e exploração do que qualquer coisa conhecida desde que surgiu a escravatura, o imperialismo é o aspecto mais alto, mais vil e mais horripilante do capitalismo, e nós nos opomos a ele.” (Isso, é claro, numa resenha de “Mulher-Maravilha”.)

Ou você pode encontrar resenhas de uma só frase, sucintas e crípticas. “Aconteceu isso com meu amigo Eric”, diz uma crítica do filme “Coringa”.

O espírito indisciplinado e de aceitação geral do Letterboxd pode incomodar. D’Angelo admite que fica “enfurecido” quando autores escrevem o texto todo em minúsculas ou se recusam a usar “gramática e pontuação normais”, o que acontece com frequência no site.

Mas a falta de regras ou estruturas também pode resultar em críticas interessantes e nada convencionas, e o site oferece uma plataforma a vozes que de outra maneira não seriam ouvidas. No Letterboxd, é possível descobrir não só novos filmes a assistir como novos críticos.

Sydney Wegner, mãe solteira na região rural do estado americano do Texas, começou a usar o Letterboxd no final de 2012. Sob o nome de usuário @campbart, ela escreve resenhas vívidas e longas (e quase que exclusivamente em minúsculas) sobre filmes de ficção científica, terror e ação, entre as quais um artigo muito emotivo sobre “Minions” que pode ser lido como uma ode poética à sua filha.

“Escrevi daquele jeito porque é o que gosto de ler”, ela disse. “Críticas sempre me parecem meio tediosas a não ser que tenham um aspecto pessoal.”

Wegner disse que jamais tinha pretendido “escrever profissionalmente”, mas, à medida que sua conta começou a ganhar seguidores, ela passou a receber ofertas de trabalho pago como resenhista. Wegner foi entrevistada em podcasts, apresentou sessões de cinema e recebeu pedidos de resenhas dos editores de diversos sites de cinema, entre os quais o Film Freak Central.

Lucy May começou no Letterboxd em 2015 e hoje é uma das usuárias mais populares, com quase 60 mil seguidores. May, de 26 anos, vive com a família no estado americano de Illinois e trabalha num cinema; nas horas vagas, ela assiste a filmes e escreve sobre eles longamente no Letterboxd.

Ainda que May afirme ser “acima e além de tudo uma fã do cinema”, e não uma crítica profissional, ela mesmo assim passou a se considerar crítica. “Eu me definiria como uma crítica da era do Letterboxd”, disse.

May considera que “a onda moderna de críticos” no Letterboxd seja interessante porque “muitas das velhas regras estão sendo jogadas no lixo”.

“Agora há menos reclamações quando pessoas dão más classificações a filmes elogiados do passado e mais amor por coisas como comédias românticas”, ela disse. “A honestidade no Letterboxd me fascina. Não aprendi a escrever na universidade ou qualquer coisa do tipo, mas mesmo assim me considero crítica, nesse novo sentido.”

A explosão de crescimento do Letterboxd de fato favorece os usuários mais jovens. No app, a forma pela qual 75% dos usuários acessam o serviço hoje, de acordo com a companhia, a faixa etária mais presente é a dos 18 aos 24 anos. “O número de membros jovens cresceu demais”, disse Gracewood, a editora-chefe.

Rede social de cinema Letterboxd
Rede social de cinema Letterboxd - Reprodução

E ela afirma que, quando a plataforma atrai esses usuários mais jovens, eles logo percebem uma evolução em seu gosto. “Eles chegam tendo visto ‘A Princesa e a Plebeia: Nova Aventura’ e logo estão vendo 'Os Guarda-Chuvas do Amor’”, disse.

Essa virada na direção de usuários mais jovens significa que o Letterboxd enfim começa a se expandir fora do grupo fechado dos devotos do cinema —e os mais de 1,2 milhão de novos usuários de 2020 representam muita gente que “não é tecnicamente cinéfila”, explicou Buchanan.

O crescimento propiciou um novo nível de sucesso para a plataforma, e Buchanan vê potencial ainda maior. “Há dezenas de milhões de usuários da Netflix, por exemplo. Sabemos que não vamos atrair todos os usuários da Netflix, mas também sabemos que o apetite por conteúdo relacionado a filmes está crescendo.”

A alta no crescimento indica que, embora a indústria cinematográfica tenha, de muitas maneiras, sido devastada pelos lockdowns e pelo flagelo da pandemia, a cultura do cinema em si continua a prosperar. Talvez não possamos ir ao cinema, mas, como demonstra o sucesso do Letterboxd, ainda queremos falar de filmes.

Tradução de Paulo Migliacci

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