Quem é o Imperador Sem Teto, ex-missionário que prega a palavra da periferia

Espécie de personagem criado pelo curitibano Igor Kierke usa música, dança e teatro para provocar o público

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Igor Kierke, ex-missionário curitibano que capitaneia o projeto Imperador Sem Teto Folhapress

Curitiba

Foi aos 14 anos que o curitibano Igor Kierke, de 28 anos, abandonou as atividades como missionário mirim de igrejas evangélicas. Já falava a muitos, “uns 5.000”, nas suas contas, mas passou a questionar o que pregava depois de ler a Bíblia 14 vezes.

Decidiu então explorar as habilidades oratórias e o conhecimento que acumulou com suas várias leituras —ele conta que não podia assistir à TV ou ouvir certas músicas por causa de sua ligação com a Igreja— com outros públicos, com o teatro. Incentivado por amigos do rap, criou também suas primeiras composições musicais.

Dali, foi um passo para juntar essas e outras artes e criar o Imperador Sem Teto, espécie de personagem que une autor e obra. “Diria que ele é o ativista que existe dentro de mim potencializado ao máximo”, define Kierke, dotado de uma efervescência de pensamentos que transparece na maneira agitada com que se porta. Segundo ele, há outros personagens em construção.

Quem espera uma pregação vai encontrar. A base dela, no entanto, parte do que Kierke chama de sua "Bíblia marginal", arcabouço de referências que dificilmente seria distribuído em templos tradicionais. É dessa Bíblia que surgem todos os elementos estéticos de sua obra, que inclui música, teatro, dança, cinema e literatura. Já "Sem Teto" é o universo em que o personagem vive.

“Estamos pregando a palavra da periferia e sinto que poder experienciar esse fenômeno é o maior fator de conversão de fiéis. A diferença é que não cobramos dízimo”, diz Kierke, aos risos.

Provocador em todos os sentidos da palavra, o Imperador Sem Teto faz o público refletir sobre os diversos contornos da espécie humana no século 21, da sua relação com o trabalho e com o capitalismo até a perpetuação de visões “mais primitivas que a Pangeia”, como canta em uma das músicas.

A proposta é condensar as críticas num espetáculo, resumido pelo autor como um “acontecimento”. “É quase como se isso encurralasse o espectador em um emaranhado sensorial. Acho impossível que alguém assista e escape por algum lado.”

Kierke é quem conduz o personagem por meio das composições e interpretações, mas uma equipe é responsável pelo Imperador, que, segundo ele, não se define como uma banda, mas como um movimento. O time fica completo com Gabriel Muller na música, Arthur Augustus no teatro, Juan Silva na dança, Juliana Janeiro na iluminação e Gabriella Muller na produção.

O conteúdo das escrituras parte da própria vivência dos artistas, todos vindos de periferias do país. Kierke é de Caiuá, mais conhecido como “Caiuaquistão”, região do extremo oeste de Curitiba.

Um dos exemplos disso é "Semaninha Boia-Fria", que tem uma letra escrita a partir de conversas que Kierke escutou no ônibus —o clipe da faixa, aliás, foi gravado num desses. Como todo o disco "Lado A", lançado em 2019, a música não tem um só estilo e mistura diversas sonoridades, algumas mais fortes, que dão fundo a letras provocativas, e outras que convidam a dançar.

“As letras também nunca definem um gênero, podem ter sido escritas por uma mulher, um homem, ou alguém agênero. Tenho cuidado com termos, gírias, para que se tenha uma representatividade em larga escala, que periferias ao redor do mundo possam me entender.”

Enquanto "Lado A" apresenta um retrato dessas periferias, "Lado B", obra ainda em produção, deve trazer sugestões e colocações sobre essa realidade, conta Kierke. A mistura de estilos, que inclui rap, hip-hop, bossa nova, samba, blues, eletrônico, ritmos de base africana e, “se duvidar, até sertanejo universitário”, também continuará, promete o artista.

“Eu amo que tenha de tudo, acho que esse é o Brasil, é a nossa diversidade”, afirma. Na música, ele lembra referências distintas, como Rodrigo Zin, sua inspiração no rap, e uma lista com mais de uma dezena de artistas, que vai desde Chiquinha Gonzaga até System of a Down.

O Imperador Sem Teto, já ácido e debochado, assusta o próprio criador no novo trabalho. Segundo ele, a “liberdade de expressão absoluta do personagem” é o que o aproxima do público, que, no fundo, queria repetir tudo aquilo no grupo de WhatsApp da família. “A gente precisa parar de condenar o ódio que sentimos, mas falar sobre ele, canalizar, saber onde aplicar.”

Para não cair no “erro do PT”, como Kierke compara, o grupo tenta não se distanciar das bases. Nos shows pelo país, antes da pandemia, eles faziam questão de visitar a periferia de cada cidade, onde “se conhece o povo de verdade” e onde estão “os pretos e marginalizados”.

É ainda mais de perto que Kierke retira outras experiências para as composições. Bissexual, ele teve de convencer a própria mãe de que todo mundo pode “dar para quem quiser”, trecho do sambinha "Prosa", outra faixa do "Lado A". “Se eu não conseguir fazer com que minha família entenda o que estou falando, não vai adiantar, quem eu vou alcançar?”, afirma o artista.

Já na música "Molotov", o Imperador convida o ouvinte a uma reflexão política. “Zé, deixa de ser otário/ Se um sapato custa 15 vezes teu salário/ Quem foi que lucrou seus 15 meses de trabalho suado?/ Deixo avisado: não foi você”, afirma em um trecho.

O clipe da música completa a provocação. Filmado em tecnologia 4K, com efeitos de transição de imagens e enquadramentos propositalmente tortos, as imagens mostram um protesto de guerrilha urbana que mescla revolta, arte e bruxaria.

Vida e obra também se confundem no cenário amargo da cultura na pandemia. Com os shows parados, o grupo tenta conseguir renda participando de lives e diz brigar com o poder público para furar a blindagem de editais que poderiam auxiliar os artistas da periferia.

“Estamos pedindo que passe um carro de som na favela avisando que existe um edital e que esse edital não tenha 1.001 termos acadêmicos, eruditos e que não seja tão higiênico assim. Rap não passa e funk não aprova porque têm palavrão e opiniões politizadas”, afirma.

Em paralelo à produção de "Lado B", a nova empreitada do Imperador Sem Teto, Kierke também se dedica a outra arte —a poesia. Juntou escritos atuais com os da época de missionário e montou o livro "Guerra Mundial do Indivíduo".

“O que vou fazer com isso, ainda não sei, mas ficou bem bonito”, diz, orgulhoso, o autor.

Confira música exclusiva de lançamento do Lado B:

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