Ai Weiwei abre sua maior mostra e ataca artistas que ignoram a luta contra a Covid

'Os artistas só querem ser bem-sucedidos, ficar ricos ou virar celebridades', diz o chinês, com retrospectiva em Lisboa

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Montagem Ai Weiwei

O artista contemporâneo chinês Ai Weiwei Montagem de Márcio Sampaio sobre fotografia de Daryan Dornelles

Lisboa

O artista e ativista chinês Ai Weiwei acaba de inaugurar, em Lisboa, a maior exposição da carreira. São 85 obras, incluindo toda a sua produção audiovisual e registros fotográficos da época em que ele viveu como um imigrante sem documentos em Nova York.

“Muitos dos trabalhos nesta sala já tinham estado em outras exposições, mas jamais haviam se encontrado. Eram todos estranhos uns para os outros, porque simplesmente não é qualquer museu que pode ter tudo isso junto. Normalmente na Europa temos entre 500 e 2.000 metros quadrados de exposição. Aqui é o dobro, são 4.000 metros quadrados", disse o artista, numa apresentação da mostra.

O tom de celebração, no entanto, esbarra na tragédia da pandemia, que o artista chama de "pior momento da história humana". "Artistas e escritores não estão realmente dedicados, não estão contribuindo para a luta humana”, disse. “Nós simplesmente não temos artistas, escritores e pensadores se preocupando com as condições humanas. São muito poucos, ou são muito poucas as vozes que podem ser ouvidas. Os artistas só querem se tornar bem-sucedidos, ficar ricos ou virar celebridades.”

Um dos mais famosos e polêmicos artistas contemporâneos do mundo, Weiwei está vivendo há dois anos numa fazenda na região do Alentejo, no interior de Portugal, e incluiu na nova mostra quatro trabalhos originais feitos já no país. As obras usam alguns dos elementos mais tradicionais do artesanato lusitano, como a cortiça e o azulejo.

Para fazer os trabalhos, o artista percorreu diversos pontos do país, aprendendo e colaborando com artistas locais. “Eu sou um artista contemporâneo, mas eu presto muita atenção às tradições culturais e ao artesanato tradicional. A arte é chave para nós vermos o que aconteceu no passado”, disse.

Toda feita em cortiça, a escultura "Brainless Figure", ou figura sem cérebro, é uma das peças criadas especialmente para a mostra –é uma reprodução do corpo do próprio artista. Organizador da exposição, o brasileiro Marcello Dantas —que foi responsável também pelas mostras recentes do artista na América Latina— se entusiasma ao falar da peça.

“Você não consegue esculpir normalmente em cortiça, porque ela se esfarela. Ai Weiwei criou um método com alto nível de precisão que escaneia todo o corpo dele. A partir daí é criado um modelo tridimensional. Depois isso passa por um processo que envolve o trabalho de uma máquina e, no fim, o trabalho de um artesão que dá o acabamento”, conta.

Outro trabalho inédito, “Pendant (Toilet Paper)" é uma reflexão sobre o comportamento humano durante a pandemia da Covid-19. A representação de um rolo de papel higiênico de quase dois metros, esculpido em mármore português maciço, lembra a corrida mundial pelo produto, que acabou virando um símbolo dos primeiros momentos da crise sanitária global.

Gigante papel higiencio esculpido em mármore português maciço
Mostra 'Rapture', de Ai Weiwei, em Lisboa, em Portugal, em 3 de junho de 2021. - - Patricia de Melo MoreiraAFP

“Essa procura desenfreada por papel higiênico representa a insegurança e a desconfiança das pessoas no sistema em que vivem”, afirma o artista.

Um dos temas mais caros a Ai Weiwei, a situação dos refugiados e imigrantes, também está presente no trabalho desenvolvido em Portugal. Todo feito em azulejo, o painel "Odisseia" retrata a difícil situação dos imigrantes no mundo.

Outras obras célebres de Weiwei sobre o assunto, incluindo os dois barcos gigantes com refugiados, também estão em exibição.

Em cartaz até o fim de novembro, a exposição “Rapture” é dividida em dois momentos. “É uma exposição em que a gente revela os dois lados do Ai Weiwei como artista. Esse lado que vai nas raízes culturais chinesas, com obras que olham para este lado do sonho e da fantasia. E o outro lado que é o mais conhecido do Weiwei, que é o lado ativista, engajado politicamente, o lado do artista que tem uma conexão muito forte com a nossa realidade e com o nosso tempo”, afirma Dantas.

A ligação entre as duas alas da mostra é feita por uma das obras mais marcantes do ativista. “Snake Ceiling” é uma instalação em que mochilas formam uma serpente, representando as crianças mortas num terremoto em 2008 na província chinesa de Sichuan.

Nascido em 1957 em Pequim, Weiwei se tornou uma figura célebre na China antes de se tornar um dos artistas contemporâneos mais celebrados do planeta. Ele colaborou com o projeto do famoso estádio conhecido como ninho do pássaro, símbolo dos Jogos Olímpicos de 2008, e colecionou prêmios ao longo da carreira.

Seu posicionamento crítico ao regime, no entanto, fez com que passasse a acumular também problemas com o Partido Comunista, sendo detido diversas vezes. Em 2011, foi preso no aeroporto e passou 81 dias na prisão. Um de seus ateliês, em Xangai, foi demolido no mesmo ano.

Impedido de sair do país durante mais quatro anos, o artista deixou a China em 2015, depois de ter seu passaporte devolvido pelas autoridades. Em 2018, viu mais um de seus ateliês destruídos pelo regime e passou temporadas em Berlim e no Reino Unido.

Em Lisboa, ele não poupou críticas aos comunistas. “A China é um estado autoritário. Não há eleições, imprensa livre e nem liberdade individual.” Ai Weiwei também acusou o regime chinês de destruir a estrutura familiar do país com a política de permitir só um filho por casal –a medida vigorou até 2013, quando duas crianças por família foram permitidas e foi revista na semana passada por Pequim, que passou a autorizar três filhos por casal.

Uma das peças de destaque da exposição de Lisboa é justamente uma reflexão sobre a opressão chinesa. Um tapete de lã, confeccionado na China, traz a impressão de marcas deixadas pelos tanques do Exército enviados para esmagar os protestos na praça da Paz Celestial, no centro de Pequim, em 1989. Weiwei lembrou que sua exposição foi inaugurada no dia 4 de junho, precisamente no aniversário de 32 anos do massacre dos estudantes e num momento de crescentes tensões.

O artista, que diz se sentir muito confortável em Portugal, tem ainda outros projetos no país num futuro próximo. Entre eles está outra exposição, desta vez no Porto, e o lançamento, em novembro, de seu livro de memórias, “1.000 Anos de Alegrias e Tristezas”, em edição também em português.

Ai Weiwei - Rapture:

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