Descrição de chapéu Moda

Como Zuzu Angel se tornou a maior estilista do país e, por isso, foi morta pela ditadura

No seu centenário, cartas, depoimentos e imagens iluminam como o amor pelos filhos influenciou sua obra

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Zuzu Angel em reprodução de documentos do acervo da estilista Zuzu Angel

Zuzu Angel em reprodução de documentos do acervo da estilista Zuzu Angel Ricardo Borges/Folhapress

Pedro Diniz

Jornalista de moda, foi colunista da Folha entre 2014 e 2019

[resumo] A estilista mineira Zuzu Angel brilhou no exterior ao vestir estrelas de Hollywood com suas criações e causou a ira da ditadura ao alardear como os militares haviam matado o seu filho. No centenário da estilista que pôs o Brasil no mapa da moda internacional, cartas, depoimentos e imagens iluminam como o amor pela família influenciou sua obra e causou a ira do regime.

Zuleika Angel Jones não era mais dada a festas, mas o convite para o jantar na casa da amiga Lucinha Andrade Vieira, da família dona do extinto banco Bamerindus, parecia valer a saída.

Além disso, por mais que naquele 13 de abril de 1976 ela tivesse trabalhado desde cedo em sua loja na rua Almirante Pereira Guimarães, no Leblon, passado na casa de Chico Buarque para entregar camisetas estampadas com anjos às filhas do músico com a atriz Marieta Severo e ainda precisasse finalizar a coleção cujo desfile ocorreria naquele ano em Nova York, ela sabia que circular era parte do trabalho de estilista. “Tudo bem”, deve ter pensado. “Haveria amigos."

A socialite paulista Ruth de Almeida Prado era uma delas, convidada pela anfitriã numa lista seleta que incluía nomes de ideologias e origens tão diferentes quanto o empresário luso-brasileiro do ramo do turismo André Jordan, o jornalista Aristóteles Drummond e o cirurgião plástico Ivo Pitanguy, nascido na mesma Minas Gerais de onde a costureira havia saído no início dos 1940 após o casamento com o canadense Norman Angel Jones —que lhe deu três filhos e o sobrenome.

Não era um jantar de gala, então ela se satisfez em trajar seu look preto de protesto, um vestido de luto pela morte do filho primogênito, o militante Stuart, que ela sabia que tinha sido morto por militares naqueles anos de chumbo e cujo corpo reivindicou embalar numa carta endereçada ao próprio presidente Ernesto Geisel.

Era uma roupa decotada, costurada por ela nos últimos cinco anos de busca pelo filho desaparecido e usada naquela noite com um xale e quase como extensão das olheiras escuras, pigmentadas pelo esgotamento de não ter seu desejo de mãe atendido.

O fato de ser mãe, é possível cravar agora que completaria cem anos neste sábado (5), moldou não só o destino de Zuleika naquela noite, mas parte crucial da história da moda brasileira fundada pelo nome que a tornou ícone, Zuzu Angel.

Suas últimas horas lembram pouco a mulher que legou cores, rendas e estampas vivíssimas à imagem do país internacionalmente. No corpo, a única lembrança que denotaria o tipo de mulher atenta à moda eram os sapatos pretos arrematados com fivela de strass com assinatura do francês Charles Jourdan.

Espécie de Christian Louboutin daquele tempo, ele havia morrido dois meses antes. Ironicamente, nas primeiras horas da madrugada daquela quarta-feira, 14 de abril, seria ela a morrer, assassinada por agentes militares como, finalmente, reconheceu a Justiça no ano passado.

Zuzu foi Zuleika nos momentos finais de vida, enquanto o seu carro saía da pista numa manobra brusca, feita com o intuito de fugir de uma emboscada armada logo após o túnel que hoje leva o seu nome, entre os bairros da Gávea e de São Conrado.

Segundo o produtor cultural Sérgio Costa e Silva, outro convidado daquele último encontro social da estilista, suas últimas palavras foram dedicadas às filhas, a do meio, Ana Cristina, e a caçula, Hildegard.

“Não falou de política”, diz ele, lembrando da conversa que teve com ela na carona que lhe deu entre a avenida Atlântica e o Leblon, onde ela pegaria seu Volkswagen Karmann-Guia para ir embora para casa.

Numa das cartas que compõem o acervo com mais de 5.000 itens do Instituto Zuzu Angel, fincado numa casa do século 19 no bairro da Tijuca e ao qual este repórter teve acesso, está um relato dele enviado à família, no qual afirmou à jornalista Hildegard que a mãe dela chegou a falar sobre o sucesso naquela curta viagem que faria a Nova York, mas centrou o papo no orgulho pela cria.

“Você pelo seu crescimento profissional [Hildegard se firmava como colunista social], e ela [Ana Cristina, já residente nos Estados Unidos] pelos cursos que terminava e que lhe ofereciam novas perspectivas empresariais. Contava que naquela noite havia falado longamente com Cristina —o que hoje vejo como a despedida.”

Não se tratava, porém, apenas de contos de uma mãe coruja. A última conversa mostra como a maternidade influenciou suas roupas e seus atos públicos, na moda e fora dela, e como, por isso, a estilista se tornou um incômodo para o governo da época a ponto de os militares decidirem silenciá-la.

As primeiras criações originais de Zuzu Angel não foram as diversas roupas que costurou para si e para amigas de Curvelo, cidade onde nasceu, mas para o filho Stuart em seu primeiro ano de vida.

Ela havia se mudado com o marido para Salvador, onde teve o primogênito e onde travou contato com a cultura de matrizes africanas. Criou um robe para ele e, na cintura, amarrou um ursinho de pelúcia.

Quase 25 anos depois, a referência infantil apareceria no desfile-símbolo de sua carreira, quando, em setembro de 1971, mostrou roupas com soldados, tanques de guerra e sóis encarcerados bordados como desenhos de criança, exibidos na casa do então cônsul brasileiro em Nova York, Lauro Soutello Alves.

A ideia era denunciar a repressão no país e a prisão do filho —ela ainda não sabia detalhes da tortura e da morte do ex-militante do grupo MR-8. Isso porque só no ano seguinte é que viriam à tona as páginas em que o companheiro de prisão Alex Polari relatava como Stuart foi arrastado nu e com a boca presa a um cano de escape na Base Aérea do Galeão.

Stuart Edgar Angel Jones, que militou no grupo de esquerda MR-8 e desapareceu em 1971 - CBA (Comitê Brasileiro de Anistia)

Os shorts que as americanas e as jovens brasileiras tanto gostavam eram referência ao estilo da filha Ana Cristina, que acompanhava a mãe nas incursões públicas no exterior.

Os conjuntos estampados com bananas, que a crítica gostava de remeter a Carmen Miranda, foram inspirados nos gostos e na modelagem de roupas pensadas para Hildegard, que acompanhava do Rio a ascensão de Zuzu.

A loja-ateliê aberta em 1973 era frequentada por amigos da filha, uma juventude que bebia do rock, do tropicalismo e da quebra com o tradicionalismo da costura francesa. Paulo Coelho e Raul Seixas deram pinta por ali.

Liza Minelli também. Ela era mais uma celebridade de Hollywood que usava as criações de Zuzu, destacadas nos jornais americanos, num momento em que a imprensa brasileira, por autocensura, não costumava abordar o teor político das criações. O sucesso retumbante nos Estados Unidos, porém, a manteve nos holofotes.

Zuzu Angel virou uma marca jovem, que nasceu na alta-costura, sob medida para uma elite que acompanhava em silêncio o que acontecia nas coxias da ditadura, mas que enveredou pelo pronto a vestir para tentar atingir outros públicos.

O discurso incisivo afastou antigas clientes -- "Mas mamãe ganhou muito mais”, conta Hildegard Angel, sentada numa poltrona de seu apartamento no bairro do Flamengo, decorado com fotos e obras de arte, entre elas, duas versões do retrato do irmão flechado como são Sebastião e dadas de presente pelo pintor gaúcho Glauco Rodrigues.

Uma carta guardada por ela no próprio celular mostra o quão ciente de seu papel era Zuleika. Foi enviada ao já ex-marido, Norman Jones, em 22 de janeiro de 1975 —cerca de um ano antes de sua morte, portanto—, quando ela já era vista como pedra no sapato da ditadura devido ao estardalhaço que seus anjos, alguns ensanguentados, causaram no exterior.

“Norman, meu abraço, sei que estou em falta, não tendo respondido sua carta antes, porém cheguei em cima do Natal, com os problemas das vendas necessárias para salvar o movimento. Tudo é difícil e complicado quando se começou como eu, sem capital, com tantos encargos e despesas. As meninas vão bem. Muito obrigado pelo envio dos recibos, ainda não os usei, porque acabei não levantando tal dinheiro”, escreveu, antes de relatar suas impressões sobre o futuro das filhas e lembranças do filho morto.

“Ela sempre foi presente, e se preocupava muito conosco. Eu já trabalhava como jornalista, mas ela sempre nos via como crianças”, lembra Hildegard, numa das quatro vezes em que as lágrimas saltaram na conversa com este repórter.

A verdade é que muito da frequência com que Zuzu aparecia nas páginas noticiosas de seu país natal se dava mais pelo êxito que acumulava fora do Brasil e pelo trânsito social com personalidades.

Foi em 1968 que ela não apenas soube do envolvimento do filho, estudante de economia, com a militância armada, como estreitou laços com uma de suas clientes mais famosas do lado de cá dos trópicos, a então primeira-dama, Yolanda da Costa e Silva, mulher do segundo presidente do ciclo iniciado com o golpe de 1964.

Segundo Hildegard, a mãe acompanhava os movimentos dos filhos. Ela teria sabido com antecedência que os militares executariam prisões na PUC carioca e, por isso, teria pedido a Ana Cristina, sem lhe explicar o motivo, que largasse a faculdade e fosse morar nos Estados Unidos.

“Minha saída do teatro foi por insistência dela. Ela sabia que os militares encaravam a arte como coisa de comunista, e que, se eu fosse para o colunismo social, estaria segura”, diz.

As idas aos Estados Unidos coincidiram com o interesse dos americanos pela moda de Zuzu Angel, que adotava temas vinculados ao imaginário do Brasil em suas roupas.

Naquela época, é preciso lembrar, havia uma abertura da sociedade a um novo padrão de mulher americana, mais solta e que representasse a entrada feminina no mercado de trabalho e a libertação dos códigos europeus.

Foi a atriz Joan Crawford quem apresentou Zuzu às pessoas certas e, após ela ter feito desfiles de pequenas coleções, se associou a um grupo de designers que tinha como objetivo desenvolver a liderança feminina nos negócios da moda.

A virada ocorreu em 1970, quando a butique multimarcas Bergdorf Goodman, de Nova York, a convidou para criar uma coleção e apresentá-la num desfile.

A International Dateline Collection I não foi apenas um sucesso pessoal, mas representou a primeira vez que o mundo conhecia roupas inspiradas em traços culturais do Brasil. As baianas, o casal Lampião e Maria Bonita e as rendeiras brasileiras inspiraram os looks divididos em blocos.

O próprio Andrew Goodman, herdeiro e diretor à época da lendária loja adquirida pelo pai, Edwin Goodman, discursou para a plateia. “Nosso achado, nosso orgulho, nosso deleite”, disse sobre a coleção. O registro está no verso de uma foto sua nesse momento, que catapultou a marca quando ela mais precisava de exposição.

Quando Zuzu recebeu a informação, num telefonema anônimo em 1971, de que seu filho havia sido preso, ela arriscou aliar a estética de valorização da cultura ao descalabro que rolava em seu país.

A International Dateline Collection III foi concebida com muitos motivos e flores, e assim a estilista a executou, mas também idealizou elementos que faziam referência à ditadura. Nos croquis conservados em ambiente climatizado, há anotações sobre como um tanque deveria ser bordado. Em vez da bandeira do Brasil preso a ele, havia apenas uma haste na qual se via um quadrado verde-amarelo.

O desfile-protesto, talvez o momento de maior exposição da moda nacional de que se tem notícia, era para ser apresentado no Gotham Hotel, cenário de vários desfiles realizados pelos criadores americanos, mas de última hora e sem explicar o motivo, a costureira pediu ao cônsul que apresentasse as roupas no consulado.

Os dois primeiros blocos mostravam a Zuzu Angel que ficou famosa, em estampas, vestidos soltos, minicomprimentos e eram encerrados por Ana Cristina com um violão cantando “Tristeza”, samba de Haroldo Lobo e Niltinho.

Sob os versos “tristeza/ por favor, vá embora/ minha alma que chora/ está vendo o meu fim”, as modelos —uma delas, Kathy Lindsay, filha do prefeito de Nova York à época, John Lindsay— passavam lentamente exibindo pela primeira vez o anjo bordado pelo qual Zuzu seria reconhecida.

“Havia um grande silêncio, impressionante”, relembra Ana Cristina em texto enviado à reportagem. “Naturalmente, o meu dever de filha e irmã era de acompanhar e socorrer minha mãe. Aspirava rever o meu irmão, de quem sentia muita falta.”

Os desenhos com motivos militares apareciam porque a estilista sabia o que acontecia nas dependências das bases com os presos, apesar de manter a esperança de que encontraria seu filho. Trajada de preto, entrou no final do desfile e fotos de Stuart foram distribuídas à plateia. Os jornalistas entenderam o recado.

A eles, dizia que “continuaria a bater em todas as portas para que o mundo saiba, por meio da moda se necessário” o périplo que iniciava ali.

O motivo de o desfile político ter acontecido no consulado, considerado território brasileiro, não era uma provocação. Se tivesse feito a performance em solo americano, ela poderia ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional, hoje usada em processos judiciais contra quem se opõe ao governo Bolsonaro, por supostamente ferir a imagem da pátria no exterior.

“Foram momentos de grande força, beleza, na coragem sem medo de minha mãe. Ficarei sempre agradecida a ela pelo seu exemplo”, afirma Ana Cristina.

A coleção seguinte, apresentada em 1972, ganhou o nome de “Helpless Angel” (anjo desamparado) e trazia os mesmos elementos de agonia.

Já certa de que não encontraria Stuart vivo, mudou a abordagem pacífica e passou a escrever bilhetes para pessoas importantes da alta sociedade contando a história ocultada.

Era a gota d’água para o regime, que precisava calar a mulher que, em 1976, chegou a furar o bloqueio de segurança do então secretário de Estado americano, Henry Kissinger, para entregar a ele um dossiê sobre a ditadura no país e, é claro, contar sobre seu filho morto.

Essa história incômoda, porém, continua viva, guardada a sete chaves na casa da Tijuca pela arquivista Simone Costa e pelo caseiro Aldeir.

Uma pandemia bloqueou os planos de Hildegard Angel de organizar uma exposição presencial em comemoração ao centenário da mãe, agora marcada para agosto deste ano, de forma virtual, com palestras sobre a estilista, a sua moda e a ditadura militar.

Zuzu nunca encontrou o filho. Nas certidões de óbito obtidas pela família em 2019 constam as reais circunstâncias das mortes de Zuleika e Stuart. Há, no entanto, apenas um ponto no espaço destinado ao local de sepultamento do rapaz.

Desde o começo deste mês, Curvelo homenageia sua filha centenária com uma exposição de fotos na praça central.

Se estivesse viva, talvez não fosse prestigiar a homenagem. Hildegard discorda, mas diz que ela “continuaria revoltada com o que estamos passando, essa naturalização da morte. Estaria de cadeira de rodas nas ruas, protestando”. E recorda o que a mãe costumava dizer, e diria agora.

“Eu sou mineira do sertão. De uma terra de gente brava, onde o clube mais chique se chama Revólver Club.”

Erramos: o texto foi alterado

Ana Cristina é a filha do meio e Hildegard, a caçula, de Zuzu Angel. Versão anterior do texto afirmou que "Tristeza" era uma composição de Vinicius de Moraes. A canção é de Niltinho e Haroldo Lobo. O texto foi corrigido.

 

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