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Televisão

Gilberto Braga sofisticou o melodrama e fez Brasil exportar as suas novelas

Autor, morto na semana passada, elevou o gênero para um lugar de destaque na nossa televisão

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Lisandro Nogueira

Professor da Universidade Federal de Goiás, foi diretor da Cinemateca Brasileira e escreveu 'O Autor na Televisão'

O melodrama é uma forma narrativa presente em quase todos os gêneros do cinema e da televisão. Surgiu no século 18 e ganhou projeção no século 19, por meio do teatro realista-naturalista apregoado por Diderot em "O Discurso da Poesia Dramática".

Inicialmente, ele critica os versos alexandrinos em peças de Racine e busca valorizar a visualidade, o gesto, o movimento dos atores e um texto afinado com a realidade e seus novos espectadores. Afinal, as cidades começam a crescer, populações analfabetas saem do interior para as capitais e necessitam de um novo tipo de representação artístico-cultural.

O melodrama ganha impulso no teatro com peças de visualidade realista e comunicação rápida com o público. São textos afinados com o romance familiar e seus contornos valorizam as ideias e ideologias do romantismo escapista e dos dramas privados.

No início do século 20, o melodrama ganha mais um impulso extraordinário. O cinema surge e abraça essa forma narrativa que lhe dá sustentação até os dias de hoje. É o cineasta americano David Griffith aquele quem sintetiza a linguagem cinematográfica para contar uma história com imagens em movimento, quem busca no melodrama as bases para construir uma "pedagogia moral". Daí surge o cinema ficcional clássico comprometido com o reforço dos laços familiares e cristãos.

Do melodrama passamos para a "imaginação melodramática", conceito criado por Peter Brooks. O mundo moderno, fascinante e caótico, tudo ao mesmo tempo, criou uma narrativa para consolar e ajudar o sujeito urbano a interpretar todas as novidades de seu novo círculo social. A "imaginação melodramática" deixa para trás a simples oposição do bem contra o mal do velho melodrama.

Até hoje se usa bastante no jornalismo, na comunicação e nas redes sociais o embate ultrapassado do bem contra o mal. Mas esse binarismo não nos serve mais. A complexidade do mundo forjou uma nova interpretação —o mal pode lutar contra o mal num mesmo filme, ou o bem e o mal podem se unir para combater o bem. Os vilões se tornaram estrelas cultuadas em vários gêneros.

O velho melodrama persistiu durante muito tempo e encontrou na América Latina campo fértil para florescer em filmes, radionovelas, telenovelas e livros. Mas a urbanização rápida das cidades latino-americanas suscitou a atualização dessa forma narrativa. Assim, as telenovelas brasileiras, que até os anos 1960 eram baseadas em textos de lágrimas melodramáticas, começaram a mudar seus roteiros e atores.

A telenovela brasileira, imediatamente, começou a construir um "melodrama com a cara do Brasil". No novo contexto, a visualidade defendida por Diderot lá no século 19 foi a que sofreu a primeira mudança radical —os atores foram para as ruas brasileiras e os textos ganharam um coloquialismo e uma visualidade ímpar.

A telenovela com a "cara do Brasil" se sofisticou com a chegada de novos dramaturgos. Nesse momento Gilberto Braga já trabalhava na Globo, nos anos 1970, mas foi no final da década que ele elevou a telenovela brasileira para um lugar de destaque.

A visualidade de "Dancin' Days", de 1978, e a sofisticada MPB ganharam espaço. O melodrama na TV nunca mais foi o mesmo. Os textos ganharam simplicidade e ironia, temas tabus vieram à tona —homens em crise de identidade, mulheres querendo se emancipar, novas formas de sexualidade— e a política brasileira ganhou destaque em ataques desferidos em diálogos cortantes entre personagens.

Gilberto Braga refez no Brasil o cinema americano dos anos 1950, o período em que escritores como Faulkner, Tennessee Williams e outros escreveram roteiros sofisticados. Entusiasta desse cinema, Gilberto Braga se inspirou em Vicente Minelli, Douglas Sirk, Nicholas Ray para construir os melhores roteiros da novela brasileira, repletos de ironia, certa erudição, e principalmente em sintonia com um público de classe média ávido por histórias simples, mas antenadas com o cotidiano do Brasil.

Gilberto Braga foi um "autor-produtor". Como nenhum outro dramaturgo, alcançou poder dentro da Globo, entre os anos 1980 e 1990, e expandiu sua influência. Não era apenas um escritor de novelas. Era um dramaturgo que escalava atores e ajudava com muita ênfase sua equipe a escolher músicas para as trilhas sonoras.

A música popular brasileira, comumente chamada de MPB, deve muito a Gilberto Braga. Ele teve a ousadia de convidar Tom Jobim e João Gilberto para seus melodramas sofisticados. Quando que esses compositores teriam suas músicas em telenovelas? A canção "Luiza", de Tom Jobim, foi encomendada para a novela "Brilhante", de 1982.

Em 1990, Gilberto Braga encomendou de novo a Tom Jobim outra música para "O Dono do Mundo". O encontro da telenovela brasileira com a música popular mais elaborada consolidou a dramaturgia brasileira como uma das mais fortes do mundo. As exportações só cresceram e alcançaram patamares extraordinários. Se Hollywood exportava seus filmes, o Brasil passou a exportar suas novelas.

A chegada da TV a cabo no final dos anos 1990 balançou a hegemonia de Gilberto Braga na TV. Seu público mais entusiasmado e que lhe dava prestígio, a classe média urbana, começou a migrar para os novos canais. A TV aberta no Brasil entrou em lento declínio e a audiência, que era gigante, perdeu espectadores importantes.

Na verdade, a Globo tinha tanta hegemonia que a audiência era disputada intracorporis —os dramaturgos como Gilberto Braga disputavam com seus colegas quem conseguia melhores índices de Ibope.

A novela sofisticada de Gilberto Braga perdeu espaço e prestígio. A partir dos anos 2000, suas tramas não conseguiram grandes audiências. Não por sua falta de competência. Mas o espírito do tempo era outro.

Seu público mais cativo migrou para a TV por assinatura e depois para o streaming. E mais que isso –o Brasil perdeu muito a delicadeza, e o texto de Gilberto Braga não era o mais adequado para esses novos tempos. A elite brasileira, tão criticada em "Vale Tudo", aprofundou seus métodos de corrupção e conspiração.

A pancada crítica perpetrada por Gilberto Braga não encontrou mais tanta ressonância. Os escândalos foram normalizados e se tornaram rotineiros —a própria população se acomodou, e os diálogos ferinos dos personagens não tinham mais tanto impacto.

Gilberto Braga agora se torna um clássico, como Douglas Sirk e Humphrey Bogart. Ele deixa sua marca inconfundível. Fez produtos populares com sofisticação. Ele lembra Hitchcock e tantos outros cineastas e dramaturgos que penaram dentro da indústria das imagens. Eles aproveitaram as brechas para criar dentro de uma indústria em que os padrões estabelecidos são rígidos.

Entre criar e seguir normas, eles fizeram as duas coisas. Por isso, ficam na história como aqueles que habitam um terreno hostil, mas conseguem criar minimamente o que chamamos de arte —mesmo que seja uma arte rápida, aproveitando brechas e oportunidades. Gilberto Braga é especial.

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