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Cinema

'A Mão de Deus' é o 'Amarcord' do cineasta Paolo Sorrentino

Melhor filme do diretor traduz o sentimento de um jovem dos anos 1980 numa narrativa episódica e poética

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A Mão de Deus

  • Quando Estreia qui. (2) no cinema e no dia 15 na Netflix
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Filippo Scotti, Toni Servillo, Teresa Saponangelo
  • Produção Itália, 2021
  • Direção Paolo Sorrentino

Para nós, brasileiros, "A Mão de Deus" já começa com uma provocação. Após a citação atribuída a Diego Maradona —"Fiz o que pude. Acho que não fui tão mal"—, surge a qualificação: "o melhor jogador de futebol de todos os tempos".

É compreensível. Além de ter nascido em Nápoles, onde Maradona jogou parte de sua carreira, Paolo Sorrentino, diretor do filme, é de 1970. Não testemunhou, portanto, a arte de Pelé, tendo visto o craque brasileiro em ação apenas em videotape.

Contudo, a paixão pelo time local, o Napoli, e por Maradona, que jogaria no clube entre 1984 e 1991, ocupa apenas uma parcela do filme. A estrutura episódica mostra momentos da vida de um adolescente, Fabietto Schisa, vivido por Filippo Scotti: as reuniões de família, a perda da virgindade, a passagem à idade adulta, seu desejo de ser cineasta. Em suma, seu crescimento e amadurecimento nos malucos anos 1980.

Vemos a senhora boca suja, a vizinha baronesa, o pai que diz abertamente ser comunista —Toni Servillo—, a mãe que prega peças em todos, a tia que toma banho de sol nua em público, o irmão mulherengo, o tio mais velho que comemora o gol de mão de Maradona contra a Inglaterra, na Copa do Mundo de 1986, como uma vingança pela Guerra das Malvinas, e por aí vai.

Ao acompanhar os jogos do Napoli com o craque argentino, Fabietto faz amizade com Armá, um traficante que até lembra um pouco Maradona. Em um dos momentos mais curiosos do filme, Armá começa a bater em um cafetão. Quando este saca um canivete, Armá sugere que fujam. Fabietto diz: "sim, mas com dignidade", ao que Armá responde: "dane-se a dignidade".

Esse tipo de humor compõe boa parte da graça de "A Mão de Deus". Como nas cenas em que a mãe de Fabietto faz suas pegadinhas: contrata um homem para se fantasiar de urso e assustar o marido, telefona para a vizinha dizendo ser assistente de Zefirelli, entre outras armações.

Talvez por ter esse caráter de comédia popular italiana, ainda que seja tocado eventualmente pelo trágico, o filme tenha vencido o Grande Prêmio do Júri no 78º Festival de Veneza e seja o escolhido italiano para disputar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Após seguir os passos de Fellini, via "A Doce Vida", de 1960, no superestimado "A Grande Beleza", de 2013, e de abusar da mistura de "O Lobo de Wall Street", de Martin Scorsese, com "Spring Breakers", de Harmony Korine, em "Silvio e os Outros", de 2018, Sorrentino exercita uma bem-vinda contenção e faz aqui o seu "Amarcord", clássico de 1974. Felizmente, o amor pelo cinema de Fellini não é marcado pela vampirização, como no filme de 2013, mas pela paixão e pelo desejo de narrar uma história com fortes toques autobiográficos.

Mesmo contido, Sorrentino ainda comete aquilo que podemos chamar de "sorrentinices". Além de apelar para o grotesco de vez em quando, reforçando insistentemente uma filiação felliniana, percebemos uma proximidade com a abjeção, por exemplo, no modo como os familiares riem do namorado ex-policial da tia, que é manco e precisa de um aparelho para falar. É o tipo de zombaria que um cineasta como Mario Monicelli tratava com mais tato em seus filmes, sem deixar de ser cruel.

Na cena da bolinação no prólogo, por outro lado, temos um encontro entre Ettore Scola e Fellini que é bem feliz no que evoca de cada diretor, evitando a grosseria como tão bem o faziam e preparando o espectador para o que virá em seguida: a apresentação do núcleo familiar de Fabietto, quando ele, o pai e a mãe vão socorrer a tia bolinada da fúria do marido enciumado.

Consideravelmente menos exagerado e afetado que qualquer outro filme do diretor, e talvez por isso mais inteligentemente estruturado, "A Mão de Deus" consegue traduzir em imagens o sentimento de um jovem dos anos 1980 numa narrativa episódica e poética. Com esse material intensamente pessoal e o retorno a Nápoles vinte anos após seu primeiro longa, "Um Homem a Mais", Paolo Sorrentino tem o seu melhor momento no cinema até então.

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