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Cinema

Monica Vitti tinha luz própria e não dependia apenas de Antonioni

Atriz se impôs como um nome-chave da comédia popular italiana e provou sua independência e ousadia

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Maria Luisa Ceciarelli pode até ter nascido com esse nome, em Roma, no dia 3 de novembro de 1931. Mas sua vocação era mesmo ser Monica Vitti. Diferente das grandes estrelas de seu país —de Anna Magnani a Sophia Loren e, em parte, Claudia Cardinale—, nada nela lembrava a tradição popular do cinema italiano, mesmo que ela viesse de uma família burguesa da Sicília.

Com efeito, os cabelos claros, o porte heráldico, os movimentos suaves —tudo que a consagrou como tipo diz respeito mais ao chamado "milagre italiano" do pós-Guerra do que ao sofrimento da gente pobre.

Atriz italiana Monica Vitti em cena do filme 'Eclipse' dirigido por Michelangelo Antonioni - AFP

Era muito particular, não apenas nesse aspecto. Desde a juventude sentiu que a única razão de existir era "ser outra". Ela se matriculou na escola de secretariado para agradar à família, mas seu gênio já se manifestava —se inscreveu na Academia de Arte Dramática Nacional. A força de sua personalidade e a tendência nada conformista já se manifestavam desde então.

Não por acaso, sua carreira de atriz foi forjada pelo encontro marcante com Michelangelo Antonioni. Mas até que ponto Antonioni seria plenamente Antonioni sem o encontro com Monica Vitti? Seria notável, sim, mas é incontestável que esse encontro foi decisivo para ambos. Vitti, até ali dubladora e atriz de filmes secundários, de repente aparece em "A Aventura", de 1960, como a própria face da modernidade. É inteligente, altiva, ativa, mulher capaz de experimentar uma aventura ao mesmo tempo interior e exterior.

Mais do que isso. Como diria Antonioni, o que ela tem de mais estranho são os olhos. "Eles não se detêm em nenhum objeto, mas fixam segredos distantes. É o olhar de alguém que procura um lugar para encerrar seu voo, mas não o encontra."

O filme estoura no Festival de Cannes, entra na lista dos dez mais dos Cahiers du Cinéma, dá um novo status à obra de Antonioni e faz de Monica Vitti uma estrela. O que veio depois justificaria o encantamento mútuo de que foram tomados o cineasta e a atriz –"A Noite", em que ela faz um segundo papel, ao lado de Jeanne Moreau, e "O Eclipse" completariam a famosa "trilogia da incomunicabilidade" em 1961 e 1962, nesta ordem, e trariam o nome de Monica Vitti de uma vez para a história do cinema. Junto com o de Antonioni, claro.

Ambos seguiriam cada um para seu lado após "O Deserto Vermelho", de 1964, mas Vitti já era, desde então, a representante feminina de todos os impasses modernos –a dificuldade de amar, a busca angustiante de si mesma, a necessidade de independência. Diante disso, a personagem de Vitti com Antonioni demonstrava uma segurança e uma força interior de moça com educação burguesa, mas nunca de jovem burguesinha acomodada.

De fato, também a atriz não se acomodava. Como se a imagem da atriz intelectual pudesse aprisionar a artista, tratou logo de ir à Inglaterra filmar "Modesty Blaise", com Joseph Losey. Talvez a mudança de figurino tivesse espantado tanto o seu público como o de Losey –o fato é que, na pele de agente secreta, o resultado não foi o que se esperava.

Nem por isso a atriz desistiu. Muito pelo contrário. Ao longo dos anos 1960 e 1970, trabalhando com diretores como Mario Monicelli, de "A Garota com a Pistola", de 1968, e vários outros, Luciano Salce, de "Pato com Laranja", de 1975, e Alberto Sordi, de "Amor, Ajuda-me", de 1969, ela se impôs como um nome-chave da comédia popular italiana e provou que sua independência e ousadia não se limitavam aos personagens antonionescos.

Longe disso, ousou mesmo fazer "A Mulher que Inventou o Rebolado", de 1969, com direção de Marcello Fondato. Em diversas ocasiões, esteve ao lado dos maiores atores da comédia italiana (e não só), como Vittorio Gassman, Ugo Tognazzi, além de Alberto Sordi, sem nunca perder o rebolado.

Para quem a conheceu, aliás, Monica Vitti nunca precisou provar que tinha luz própria e, afinal, não dependia só de Antonioni. Chegando aos 50 anos permitiu que a carreira de atriz aos poucos fosse sendo substituída por funções outras. Escreveu os roteiros de "Flirt" e "Francesca È Mia", que seu então companheiro, Roberto Russo, dirigiu nos anos 1980.

Em 1990, ela própria dirigiu "Scandalo Segreto", que valeu a ela uma indicação como melhor diretora estreante ao prêmio David de Donatello, o maior do cinema italiano. Terminaria a carreira dois anos depois atuando em "Ma Tu Mi Vuoi Bene", de Marcello Fondato, de quem foi parceira em várias ocasiões. Em 1995, quando o Festival de Veneza celebrava os cem anos do cinema, recebeu um Leão de Ouro por sua carreira.

Em 2000, ela se casou com Roberto Russo, com quem vivia já havia quase três décadas. Russo a acompanhou nos últimos anos, em que, sofrendo do mal de Alzheimer, Monica Vitti perdia progressivamente a memória. O próprio Russo fez saber aos jornalistas o problema de saúde da mulher, que começara em 1995, e razão de seu retiro.

Vitti deixara então o cinema e também a arte da conversação, na qual, segundo seus amigos, não era menos interessante do que quando surgia na tela com seu porte único, que levou o atual ministro da Cultura italiano a chamar a atriz de rainha do cinema de seu país. Bem, o cinema italiano teve várias rainhas, mas Monica Vitti será sempre uma das mais marcantes.

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