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Tapa de Will Smith em Chris Rock no Oscar uniu a esquerda e a direita

Onde estão aqueles progressistas que são contra a violência, eu me perguntei diante da reação de minha bolha à agressão

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Mariliz Pereira Jorge

A essa altura, todo mundo já sabe que Will Smith deu um tapa na cara de Chris Rock na cerimônia do Oscar. Talvez você não queira mais ouvir falar sobre o assunto. Este texto, no entanto, não é sobre o Oscar, sobre Will Smith e Chris Rock, nem mesmo sobre Jada Pinkett Smith.

Li dezenas de textos discutindo os limites do humor, o machismo da atitude do ator em bancar o herói para proteger a mulher, a defesa de que mulheres negras nunca foram vistas como frágeis e são as maiores vítimas de chacota. São discussões pertinentes, mas prefiro me ater a um único aspecto do episódio —o apoio ao uso de violência para resolver divergências. A relativização da porrada.

Will Smith dá um tapa na cara de Chris Rock durante 94ª cerimônia do Oscar - Brian Snyder/Reuters

Foi só um tapa. Ele mereceu. Eu teria metido um soco. Só quem é vítima de piada agressiva sabe a dor. Faria o mesmo. Bateu leve. Foi defesa da honra. Foi tomado por muita emoção. Bateu quem estava certo. O tapa teve muita dignidade. As pessoas perdem a cabeça. Não defendo agressão, mas... Foi um homem defendendo a esposa. Existem coisas que justificam um murrão.

Não faltam desculpas para o indesculpável.

Em 2014, um adolescente foi espancado e preso com uma tranca de bicicleta a um poste. Estava nu. Era acusado de roubo. O episódio teve apoio de uma parte considerável de pessoas que já tinham na ponta da língua o discurso que virou oficial com o triunfo da extrema direita nas últimas eleições: bandido bom é bandido morto. Um claro sinal da descrença nas instituições somado ao desprezo pelos direitos humanos e por quem os defende.

Vemos retrocessos, embalados pela mentalidade das pessoas que se deixam seduzir pela brutalidade como o único caminho para um mundo mais civilizado. Infelizmente há cada vez mais exemplos de quem defende o estado democrático de direito no discurso, mas cria suas próprias exceções em nome de uma suposta justiça, de reparações. É a lógica do "olho por olho, dente por dente", da Lei do Talião, na qual o Código de Hamurabi foi escrito lá em 1780 a.C. Os resquícios dela ainda resistem aos dias de hoje.

Pergunte ao redor quem concorda que estupradores merecem ser violentados, segundo o código tribal das cadeias. Ficará abismado ao descobrir que a maioria das pessoas concorda. Mesmo aquelas que se colocam ao lado das leis, que defendem uma sociedade justa, menos violenta, inclusiva, em que os direitos deveriam ser respeitados. Talvez você mesmo esteja agora pensado, "teve o que mereceu".

Existe, o que deveria ser óbvio, mas não é, uma diferença enorme entre proteger criminosos e querer que a legislação seja cumprida. Há um abismo entre defender liberdade de expressão e apoiar difamação, injúria, discurso de ódio. Para todos os casos, a régua é a justiça. É compreensível que as pessoas sintam raiva, dor, tristeza, vergonha, humilhação e se revoltem. Não é compreensível que achem natural que a reposta para isso seja violência. Um tapa é uma violência.

O que a polarização nos mostra é que a legislação, as regras escritas e não escritas para o bom convívio passam a ser maleáveis a depender do lado que se está. O que vale é vingança, retaliação a quem colocamos num campo oposto. Aos aliados, minha compreensão, aos inimigos, porrada física ou verbal.

No dia do episódio do Oscar, pensei que a minha bolha progressista tinha sido hackeada. Onde estavam todas aquelas pessoas que fazem ioga, dão bom-dia ao porteiro, reciclam, adotam animais de rua, apoiam causas feministas, levantam #blacklivesmatter, sonham com a paz mundial, fazem psicanálise?

Estavam de mãos dadas com a extrema direita bradando sobre defesa da honra. Tal argumento deveria causar arrepios em qualquer pessoa que saiba que o recurso foi amplamente usado na defesa de acusados de feminicídio antes do crime ser tipificado. Homens matavam mulheres a rodo e saíam impunes porque haviam tido o brio devastado. Quem sabe como a violência doméstica começa não deveria considerar um tapa inofensivo.

A impressão de que o temperamento do brasileiro tem escalado a níveis preocupantes de agressividade foi comprovada por uma análise sobre o episódio do Oscar pela Quaest. O instituto mapeou 492 mil menções sobre o assunto em três redes sociais e apontou que 74% dos usuários apoiaram a atitude de Smith, 8% ficaram ao lado de Rock e 18% se mostraram indiferentes.

A reação do público americano, que parece ser um defensor mais ferrenho da liberdade de expressão e menos conivente com violência, foi oposta. Três em cada cinco pessoas (61%), segundo o YouGovAmerica, disseram que Will Smith estava errado. Para 59% não é correto bater em alguém por algo que foi dito. Apenas 21% acham o uso da violência OK.

No Brasil, sabemos que a defesa da liberdade de expressão é bastante negociável na cabeça da maioria das pessoas. Em geral, apela-se à censura quando consideramos que alguém de quem gostamos foi ofendido. Tampouco importa o que a lei diz. Como escrevi nesta Folha há tempos, quem defende liberdade de expressão tem a ingrata missão de se manifestar pela defesa do direito de ofender. E de tempos em tempos se coloca ao lado de imbecis, raivosos, mal-educados, não porque os apoia, mas por uma causa maior, que é repudiar todo tipo de censura.

Parte do campo progressista não tem essa compreensão, se mostra corporativista, fica vulnerável sempre que abre exceções e age como censor ao dizer o que pode ou não ser dito. Acaba se aproximando da extrema direita, que usa valores morais e religiosos como regra para que a sociedade toda, em sua diversidade e idiossincrasias, se comporte da forma como enxerga o mundo.

O resultado é que tal grupo toma para si o poder de determinar o que é certo ou errado, independentemente do que dizem as leis, transformando o debate em julgamento público, quase sempre com condenação imediata.

Primeiro veio a onda de cancelamentos, abraçada de todos os lados em nome de suposta justiça. Agora passamos para a porrada, com a aprovação da maioria. O tapa de Will Smith se escora nos mais banais dos argumentos para justificar uma violência —reação passional em nome do amor, os desafios de Deus e a tentação do diabo. A extrema direita não teria feito melhor. É evidente que, se este é o caminho escolhido pelo brasileiro, já sabemos que isto não tem a menor chance de dar certo.

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