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'Crimes of the Future' enche Cannes com vísceras, sexo e tudo o que Cronenberg ama

Diretor impressionou evento com festival de órgãos dissecados, arte fetichista e reflexões sobre a sociedade materialista

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Cannes (França)

David Cronenberg tinha preparado o terreno. Antes de desembarcar no Festival de Cannes com o chocante "Crimes of the Future", ou crimes do futuro, título mais aguardado entre os que competem à Palma de Ouro deste ano, o cineasta canadense já havia adiantado que um sujeito quase teve um ataque de pânico durante uma sessão particular.

Além disso, o cineasta esperava que o desfecho do longa fosse, de fato, "muito difícil" para os mais sensíveis. Se as pessoas saíssem da sala, disse, seria compreensível.

cena de filme
Léa Seydoux, Viggo Mortensen e Kristen Stewart em pôster do filme 'Crimes of the Future', dirigido por David Cronenberg e exibido no festival de Cannes 2022 - Divulgação

Não foi alarme falso. Numa das sessões para a imprensa algumas pessoas saíram da sala ainda na primeira metade do longa. Em especial quando, após um interminável desfile de vísceras, um dos personagens cogitou fazer uma "autópsia performática num garoto de oito anos, assassinado pela mãe".

Na segunda sessão para jornalistas, numa sala com capacidade para mil pessoas, no entanto, o número de desertores permaneceu igual. Havia um clima de desconforto, é verdade, mas não a ponto de fazer uma parte significativa do público desistir dos concorridos assentos da noite.

O fato é que o canadense David Cronenberg está de volta ao tipo de cinema que o fez famoso. Aqui, ele se derrama sobre o que mais gosta —membranas, glândulas, cartilagens, fluidos, ferragens, entranhas, ácidos, líquidos purulentos, epiderme.

São imagens que poderiam figurar no laudo de uma colonoscopia, mas que nas mãos do diretor recebem tratamento de verdadeira arte cinematográfica. Não é à toa que foi o próprio Cronenberg quem, no mês passado, anunciou a venda de um NFT das suas próprias pedras renais.

No futuro incerto em que seu novo longa é ambientado, Viggo Mortensen e Léa Seyudoux interpretam um casal de artistas performáticos, mas de um tipo muito específico, já que fazem performances cirúrgicas —isto é, uma espécie de versão 2.0 da "body art" com suspensão por ganchos na pele, por exemplo.

O primeiro é portador de uma condição evolutiva de produzir novos órgãos. A outra é quem realiza as extirpações ao vivo no corpo dele enquanto ambos se contorcem num prazer evidentemente sexual.

"Quer dizer, então, que a cirurgia é o novo sexo?", questiona, a certa altura, a personagem vivida por Kristen Stewart, funcionária de um departamento burocrático responsável pelo "registro de novos órgãos".

Na trama, o casal de artistas vai buscar aprofundar as suas já radicais experiências estéticas enquanto cruza o caminho de coordenadores de biomorfologia, técnicos em organografia, performers que implantam dezenas de orelhas no próprio corpo, entusiastas de "concursos de beleza interna" e uma seita que aspira criar um exército de pós-humanos —tudo na chave de que "o corpo é realidade", como anunciam as mensagens dispersas por aquele submundo.

Cronenberg, fica claro desde o começo, está preocupado com indagações filosóficas sobre o hipermaterialismo, sobre um mundo que, com a morte de Deus decretada, se voltou em cheio para radicalizar a carne.

Não é por acaso que, num dado momento, um dos personagens diz que não é muito fã de fazer "sexo tradicional" —a superfície da pele não é suficiente.

O cineasta ainda esmiúça a radicalidade do trabalho artístico, que também é o seu métier, e pergunta se a arte pode prescindir da dor infligida ao artista.

Mais do que isso, "Crimes of the Future" é a síntese de duas vertentes mais características de sua obra —o espetáculo do "body horror", o terror extraído a partir do corpo, e o olhar despido de moralismo sobre a natureza dos fetiches, do desejo.

Em "A Mosca", de 1986, seu filme mais famoso, ele já tinha usado a decomposição da matéria humana (e animal) para falar de envelhecimento —ainda que o longa também possa ser visto como metáfora da progressão do câncer também.

Dez anos depois, em 1996, seu "Crash - Estranhos Prazeres" causou comoção, e alguma ojeriza, pelo retrato de gente que sente tesão por acidentes automobilísticos e as suas vítimas.

Com pouco mais da metade do Festival de Cannes já transcorrida agora, esse filme de Cronenberg se soma a "Triangle of Sadness", a escatológica sátira social de Ruben Ostlund, e a "Holy Spider", o denso thriller sobre femincídio de Ali Abbasi, como o trio de obras mais comentadas desta edição do evento.

Para quem está acostumado com o cinema seminal de Cronenberg, "Crimes of the Future" pode ficar aquém do choque e ojeriza prometidos. Mas, no geral, o longa deve gerar discussões acaloradas por onde estrear a partir de agora —não é todo dia que câmeras de cinema mergulham nas vísceras de criancinhas, afinal.

Mas Cronenberg nunca foi um provocador pelo simples prazer de provocar. Tampouco é considerado o mestre do "body horror" somente por virar e desvirar corpos sem pudor. Se hoje tem seu nome entre os mais consolidados do cinema, é porque sempre usou tais artifícios para expressar, corajosa e criativamente, mensagens que encontraram eco em diferentes tipos de público.

E "Crimes of the Future" não fica para trás em suas intenções de refletir, criticar e gerar incômodo ao fazer sangrar o mundo à sua volta.

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