Entenda como a série 'O Rei da TV' narra vida de Silvio Santos mostrando suas gafes

Diretor do filme 'Bruna Surfistinha', Marcus Baldini assina a produção que estreia no Star+ sem a autorização da família

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Cartaz de 'O Rei da TV', série sobre Sílvio Santos

Detalhe do cartaz de 'O Rei da TV', série sobre Sílvio Santos Divulgação

São Paulo

Há um sarcasmo latente —mas nem sempre evidente à luz das câmeras— no sujeito que se tornou o apresentador de TV mais longevo do Brasil. O humor ácido de Silvio Santos é elemento bem conhecido por quem conviveu com ele por trás das câmeras ao longo de mais de seis décadas de televisão.

E é esse o traço que a série "O Rei da TV", primeira obra ficcional sobre o Homem do Baú, procura sublinhar nesta produção da Gullane.

Em oito episódios, a série não autorizada estreia em 19 de outubro, a menos de dois meses de Senor Abravanel fazer 92 anos, e estará disponível pela Star+, plataforma de streaming do grupo Disney.

Um vídeo contendo várias cenas da produção chegou a vazar no YouTube, conteúdo que o estúdio tratou de suspender após três dias, a fim de reduzir o estrago da pirataria, mas muita gente viu o que ainda se tentava manter sob sigilo.

O protagonista é vivido por José Rubens Chachá na fase mais velha, enquanto revisita sua história e se vê na pele dos atores Guilherme Reis e Mariano Mattos, numa narrativa não linear, passando pelo início da vida como camelô e percorrendo a era do rádio.

"Eu espero muito que essa acidez do Silvio seja notada. Para quem conhece e entende esse sarcasmo, eu acho que a série tem um outro significado, para além da trajetória do camelô que virou empresário e animador", diz Marcus Baldini, diretor-geral e criador da produção ao lado de André Barcinski e Ricardo Grynszpan.

"A minha maior intenção era fazer uma coisa que tivesse esse sarcasmo e essa acidez caminhando junto com a biografia", acrescenta.

Silvio Santos é sabidamente um atleta de pegadinhas. Em 2003, o SBT se viu forçado a desmentir formalmente uma brincadeira do patrão, que anunciou a uma repórter da revista Contigo! que tinha uma doença terminal.

A série reproduz com propriedade a capacidade do animador em usar as fortes emoções de quem confiava a ele o pagamento do carnê do Baú e de outras modalidades de sorteio para alavancar a audiência.

Diante de alguém cuja vida poderia mudar completamente com a aquisição da tão sonhada casa própria, era capaz de arrastar por longos minutos o suspense em torno da conquista possível, ora acenando com o prêmio, ora com sua perda e consequente frustração.

Outro ponto alto entre os conflitos que conduzem a produção é a mágoa de Cidinha, sua primeira mulher, aqui vivida por Roberta Gualda, pelo fato de ele esconder que era casado. O arrependimento por ter omitido a existência da companheira por tanto tempo, apenas para receber da audiência feminina um tratamento mais caloroso, foi admitido por Silvio numa sessão de mea-culpa feita por ele em seu programa, em 1989, tendo inspirado parte do roteiro que vem aí.

A questão é mostrada sob o ponto de vista de Cidinha em casa, com a primogênita Cintia no colo, vendo pela TV o seu marido brincar com as colegas de trabalho como se fosse solteiro. Quando ela resolve ir até o estúdio para se anunciar como sua mulher, uma produtora é surpreendida pela informação de que o patrão é casado.

Cena de 'O Rei da TV', série sobre Silvio Santos
Cena de 'O Rei da TV', série sobre Silvio Santos - Divulgação

"Drama é conflito. Acho que tanto o Silvio real quanto o Silvio da série são um mar de carisma na forma de resolver conflitos. Mas temos que potencializar os conflitos que ele teve, como a vontade das pessoas de em algum momento fechar o Baú porque foi acusado de estelionato pela Receita Federal, e potencializar também o fato de ele esconder a primeira mulher", afirma Baldini.

"A dor da Cidinha, na forma como ela era tratada, esse desejo de estar mais próxima dele enquanto ela era publicamente escondida, a gente usa bastante."

O diretor afirma que episódios conhecidos e documentados nos noticiários ou na TV são dramatizados com alguma fidelidade, no máximo com adequações ao tempo, ao espaço e à própria necessidade da dramaturgia, mas diálogos privados entre ele e Íris, a atual mulher, vivida por Leona Cavalli, gozam de mais liberdade, com a promessa de não atropelar a essência de cada um.

A atriz Deborah Secco em cena do filme 'Bruna Surfistinha', de 2011, obra do diretor Marcus Baldini - Divulgação

Como exemplo de uma adaptação biográfica que tenha sofrido na tela alterações inofensivas à história real, Baldini lembra "Bruna Surfistinha", filme dirigido por ele, onde até um irmão foi criado no longa-metragem, trazendo uma figura inexistente na vida da verdadeira personagem, Raquel Pacheco.

"Ela tinha duas irmãs, não tinha irmão. E ela chorou quando viu o filme pela primeira vez, dizendo que aquele irmão era muito complicado. ‘Mas você nem tem um irmão’, eu disse. E ela respondeu ‘mas é como se tivesse, porque ele fala exatamente das coisas que o meu pai representava’."

De todo modo, ressalta ele, com todos os pecados que Silvio possa ter revelados em cena, "O Rei da TV" é uma biografia feita por alguém que se emociona e guarda uma boa memória afetiva sobre o personagem, garante o diretor.

Silvio Santos em seu cararim, em imagem de1988 - Paulo Cerciari/Folhapress

"O Silvio Santos tem esse lado afetivo, para mim e para muita gente, que é uma coisa engraçada, porque, toda vez em que eu estou numa roda e digo que estou fazendo uma série sobre o Silvio Santos, aquilo vira o assunto da roda, e cada um conta uma história de como era o Silvio Santos na sua infância."

Sim, Silvio tem o magnetismo de dominar as conversas, mas não é o único alvo do diretor. Em breve, ele começa a filmar um longa-metragem de ação, baseado num episódio real pouco conhecido, em que um cidadão tentou jogar um avião da Vasp sobre o Palácio do Planalto, em 1988, para matar o então presidente José Sarney.

Ainda na agenda, Baldini assina a direção da série colombiana "Angosta", baseada no clássico livro distópico de Hector Abad.

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O presidente José Sarney, o ministro de Minas e Energia, Aureliano Chaves e o presidente da Petrobras, Ozires Silva, em Campos dos Goytacazes (RJ) - Folhapress

Mas, de fato, quando o nome de Silvio Santos aparece na conversa, é impossível fugir do assunto, ainda que Baldini tenha evitado dar mais detalhes sobre "O Rei da TV", respeitando as estratégias de lançamento programadas pela Disney.

O diretor observa que Silvio é uma figura conhecida por todas as gerações, inclusive as mais novas, diferentemente de boa parte dos nomes que a televisão tornou famosos até os anos 2000, ou antes de surgirem os astros da internet.

"A minha enteada, por exemplo, não sabia quem era Xuxa, mas sabia quem era o Silvio Santos. As crianças e os adolescentes sabem de quem se trata, não sei se por causa da Maísa [Silva], mas sabem".

Maisa Silva completa 18 anos nesta sexta (22)
A atriz e apresentadora Maísa Silva - Mateus Aguiar/Instagram

"O primeiro desafio era entender por onde contar essa história, contemplando esses vários lados do Silvio, e tem vários lados positivos, como protagonista de uma história, um vencedor na carreira —às custas do que ele alcança esse posto é o que a gente fica discutindo."

Apesar de a equipe ter usado vários livros sobre Silvio Santos para abastecer a pesquisa sobre o personagem, não há menções diretas a nenhum deles. Cenas de programas, entrevistas e depoimentos na TV também servem como referência de roteiro, figurino e cenografia.

Baldini faz suspense sobre como será tratado, e mesmo se estará em cena, o sequestro de Patrícia Abravanel, ocorrido em 2001. O episódio foi seguido pela espetacular fuga de Fernando Dutra Pinto, um dos sequestradores, e de sua invasão à casa da família, no bairro paulistano do Morumbi, numa sequência que a dramaturgia não teria nada a acrescentar.

A apresentadora Patrícia Abravanel - Instagram

O sequestro da filha e seu desfecho serão inclusive enredo de outra cinebiografia do apresentador, um longa-metragem estrelado por Rodrigo Faro.

No plano real daquele 30 de agosto de 2001, enquanto uma penca de jornalistas acompanhava todo o imbróglio na rua, bem em frente à casa de Silvio, a propriedade vizinha abrigava uma complexa e sigilosa reforma para sediar a futura Casa dos Artistas, programa que viria a derrotar a TV Globo em audiência e a ser considerado plágio do Big Brother, então recém-adquirido pela emissora carioca.

Também gera expectativa a forma como será retratada a candidatura relâmpago de Silvio à Presidência da República, em 1989, quando ele se anunciou na corrida ao Planalto.

Silvio Santos faz campanha para presidente em 1989
Silvio Santos faz campanha para presidente em 1989 - Sergio Tomisaki - 6.nov.1989/ Folhapress

"Silvio Santos é punk", diz Baldini. Num enredo de super-heróis, talvez ele fosse o Coringa, compara o diretor. "Às vezes a gente voltava a ver as cenas e dizia ‘não é possível que isso acontecia desse jeito’."

A série tampouco pretende omitir a imagem e as frases de um Silvio Santos hoje tratado como alguém politicamente incorreto, que seguiu cometendo gafes e erros até muito recentemente, como elogiar mulheres "gordinhas, mas bonitas" ou constranger as convidadas que surgiam no palco exibindo generosas fendas nos decotes e saias. Ainda em 2018, o apresentador disse à cantora Cláudia Leitte que não a abraçaria porque ficaria excitado.

"Muita gente hoje trata o Silvio como um personagem anacrônico, que parou no tempo, mas se você pegar o Silvio da década de 1980, assim como Os Trapalhões, vai ver um cara fazendo alguma coisa com que todo mundo se divertia. De certo modo, naquele tempo, eles refletiam a sociedade da época." Mas tudo será visto pela perspectiva de 2022, o diretor frisa.

Renato Aragão, Mussum, Dedé Santana, e Zacarias em 'Os Trapalhões', em 1969 - IMDB

Um boneco de Silvio Santos abre a série e surge em vários trechos de sua narrativa, ilustrando a certeza de que o animador e empresário se tornou um personagem de si mesmo, como alguém que foi se cristalizando, tanto nos valores como do ponto vista externo. Há um momento em que não se sabe mais quem é o sujeito do CPF e quem é o do CNPJ, e se ele está a manipular terceiros ou a si mesmo.

"Quando você começa a ver o tanto de historia que tem, é um desafio. E então a gente começa a ver o que entra e o que sai de cena, são escolhas difíceis. Todo mundo vai sentir falta de alguma coisa", afirma Baldini.

O trailer já lançado pela Disney endossa ainda que talvez Silvio Santos possa mesmo não gostar de se ver em determinadas cenas. Há passagens de bastidores do apresentador, ainda em início de carreira na TV, que prometem chatear as colegas de trabalho, todas muito ciosas em defender a boa imagem do patrão.

Qual é a Música, com Hebe e Silvio Santos
Hebe Camargo e Silvio Santos no programa Qual É a Música, na década de 1990 - João Batista da Silva/Divulgação

A produção também adota músicas clássicas do Programa Silvio Santos, atualmente apresentado por Patrícia Abravanel, e à espera do retorno de seu rei titular. O SBT desmentiu, por meio de sua assessoria, que o animador pretenda se aposentar, versão que combina com o que a reportagem ouviu de pessoas próximas a ele. Silvio teria se afastado, desta vez, após uma forte gripe, seguida pelas baixas temperaturas.

Na série, desfilam personagens reais como Roberto Marinho, João Figueiredo, que assinou a concessão da TVS, depois rebatizada como SBT, Hebe Camargo, Chacrinha, Manoel da Nóbrega e Gugu Liberato, entre outros, com um elenco que se estende a Larissa Nunes, André Abujamra, Ary França, Bárbara Maia, Cacá Carvalho, Cássia Damasceno, Celso Frateschi, Emílio de Mello, Erom Cordeiro, Giselle Itié, João Campos, Leandro Ramos e Maria Manoella, entre outros.

"Acho que é um Silvio Santos em um nível de profundidade que as pessoas nunca viram, em que a gente mostra também o não reconhecimento do seu valor", diz Baldini. "Como ele já disse publicamente, os poderosos fecharam as portas para ele, o único funcionário de televisão que se tornou dono de televisão."

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