Descrição de chapéu Entrevistas históricas

Proibidos de usar gravador, repórteres da Folha provocaram ira de Figueiredo com entrevista

'Como o brasileiro pode votar bem se ele não conhece noções de higiene?', questionou Figueiredo em 1978

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São Paulo

Embora proibidos de utilizar gravador e fazer anotações durante a entrevista com o general João Baptista Figueiredo, último presidente da ditadura militar, os repórteres da Folha Getúlio Bittencourt e Haroldo Cerqueira Lima conseguiram reproduzir fielmente as falas do presidente.

Figueiredo se irritou. A reprodução da entrevista, de tão precisa, fez com que o presidente tivesse certeza de que havia sido gravado sem saber. Não tinha sido. Mas o prazo curto para o fechamento e a proibição de usar materiais básicos para registro, contando apenas com a memória, obrigou os repórteres a publicarem a entrevista separadamente, em dois dias.

Publicada na Folha nos dias 5 e 6 de abril de 1978, a entrevista com o general revelou os planos de Figueiredo para um Brasil que começava a vislumbrar a abertura democrática.

Reprodução da capa da Folha com foto de Figueiredo e a chamada "Exclusivo: Fala Figueiredo"
Último presidente general da Ditadura concedeu entrevista exclusiva à Folha - Reprodução

Ao longo da conversa, o general falou diversas vezes em "Revolução" e justificou muitas de suas opiniões, como ser contra a independência entre os Poderes e a anistia, usando esse termo. Ele trata o golpe militar de 1964 e a ditadura militar como um todo como Revolução.

É preciso lembrar também que Figueiredo foi um presidente desbocado (para usar um vocabulário ameno), o que pode ser observado nessa entrevista. Ele afirma, por exemplo, que os brasileiros não podem ter o direito ao voto já que não têm sequer "noções de higiene".

O material recebeu Prêmio Esso de Jornalismo.

A série "Entrevistas históricas" relembra grandes entrevistas do jornal, como parte do projeto Folha 100 anos, que celebrará o centenário do jornal, em 19 de fevereiro de 2021.

Abaixo, foram transcritos integralmente tanto a entrevista com Figueiredo, aqui unificada, quanto as introduções escritas por Bittencourt e Cerqueira Lima, bem como o relato dos repórteres acerca da experiência de entrevistar o último presidente-general da ditadura.

Um longo teste de memória

Getúlio Bittencourt e Haroldo Cerqueira Lima

Desculpem, leitores. Não é todo dia que se pode entrevistar um presidente ou futuro presidente da República no Brasil, e nossa longa conversa com o general de exército João Batista Figueiredo, no final da tarde de terça-feira [4 de abril de 1978 ], aconteceu em circunstâncias profissionalmente desconfortáveis –não pudemos usar gravador, nem tomar anotações.

Até o último momento, estávamos em dúvida quanto a esse detalhe. A consulta ao capitão Marcon, na antessala, prolongou a dúvida: ele sugeriu que consultássemos o próprio general Figueiredo sobre o uso do gravador. Quando a porta se abriu, ele caminhava em nossa direção.

“O sr. se opõe a que usemos o gravador?”

Ele faz um gesto negativo com a cabeça, mas parece um pouco sem jeito. Insistimos:

“É que permitiria uma reprodução absolutamente fiel.”

O general não se comove.

“Eu não vou dar uma entrevista a vocês. O que nós vamos ter aqui é uma conversa. Aliás, eu não dei nenhuma entrevista até agora. Como também tive com os outros jornalistas que já estiveram aqui. Eles conversaram e tal, e depois publicaram como se fosse entrevista.”

No entanto, como ele não manifestou o mínimo desagrado pela publicação de suas conversas anteriores com jornalistas, sentimo-nos encorajados. A entrevista terminou às 18h10 e às 18h30 começamos a escrever. Tivemos cuidado especial para reconstituir nossa conversa não na sequência em que ela realmente ocorreu, mas tema por tema.

Relacionamos o assunto abordados —conceito de democracia, o voto popular, direitos humanos, etc. —e a partir dessas grandes linhas tornou-se relativamente simples montar o diálogo.

Naturalmente, a quantidade de palavras que três pessoas podem dizer em 95 minutos é enorme, mas suspendemos a tarefa, cinco horas depois, absolutamente seguros de nossa fidelidade ao conteúdo da conversa.

Tivemos uma ou outra dúvida. Por exemplo, o general citou de memória o número de entidades fantasmas sustentadas pelo Congresso, mas não recordamos o número exato, e o omitimos, ou melhor, o substituímos pela expressão “um número enorme de entidades fantasmas”, que corresponde ao conteúdo da declaração do entrevistado. Exceto quanto a esse número, acreditamos que o texto publicado ontem [5 de abril de 1978] pela Folha —assim como a continuação publicada hoje [6 de abril] —reproduz inclusive o estilo com que o general Figueiredo constrói frases ao falar.

O pedido de desculpas ao leitor deve-se ao fato de que trabalhamos sobre a premência do tempo; a partir de certa hora, um jornal não pode mais esperar a produção de um texto, sob pena de comprometer todo o esquema industrial e comercial que o integram também. É sob essa pressão que cometemos um lapso, admitindo uma frase do general Figueiredo que nos parece extremamente significativa para explicar melhor suas posições.

Quando o futuro presidente da República afirma que o senador Brossard “desconheceu da Justiça e mandou a polícia invadir a Rádio Guaíba”, ele acrescentou:

“Eu jamais faria isso”.

É uma declaração de princípios essencial porque o general Figueiredo assegura que nunca se disporia a desconhecer uma decisão da Justiça.

Como tivemos que suspender nossa tarefa às 23h30 de terça-feira [4 de abril], a retomamos hoje. E, além das ideias do general Figueiredo sobre alguns aspectos da economia brasileira, acrescentamos hoje os diálogos que mantivemos com ele ainda sobre a política e também sobre outros temas.

Figueiredo de sunga preta, tênis e meias está em um jardim. Ele levanta peso com sua mão direta enquanto a mão esquerda está em sua cintura
O presidente João Baptista Figueiredo levanta peso na Granja do Torto, em abril de 1984 - Folhapress

"A Revolução não vai acabar"

A intenção do próximo presidente da República, general João Batista Figueiredo, manifestada em entrevista à Folha, ontem [4 de abril], em Brasília, é exercer um governo de transição revolucionária, que efetive a caminhada lenta e gradual em direção a um regime que amplie substancialmente a atual taxa de democracia.

Para Figueiredo, no mundo moderno já não há mais lugar para o liberalismo excessivo porque o Estado precisa estar munido dos poderes que o coloquem a salvo dos extremismos totalitários. Sua definição de democracia inclui os princípios basilares de que todo o Poder emana do povo e que os poderes devem ser harmônicos e independentes entre si.

O futuro presidente da República tem ideias bem definidas sobre o sistema político que pretende ver consagrado em sua administração: eleição indireta para presidente, eleição direta para governador. A oposição, para ele, pode vir a participar, mas através do diálogo e não da imposição de ideias.

Figueiredo deixou claro que "a Revolução não vai acabar", acentuando também que este não é um regime de exceção. "O que nós temos são as leis de exceção", frisou.

Criticou os "que hoje vivem posando de democratas" quando já "participaram do regime mais ignominioso que eu já vi, o Estado Novo de Vargas".

Quanto aos futuros governadores, Figueiredo diz que sua preocupação não é estabelecer perfil, mas escolher, dentre os capazes administrativamente, aqueles que podem ajudar a Arena a vencer as eleições de novembro próximo. Isto porque, adverte, a derrota do partido situacionista vai tornar mais ásperos os caminhos da distensão. "O Estado precisa defender-se contra os extremistas".

É a seguinte a entrevista que o general João Batista Figueiredo concedeu à Folha.

General, temos lido os pronunciamentos do sr., e sua concepção de democracia não está muito clara.
Ora, mas se eu não defini minha concepção de democracia, como é que ela pode estar clara?

Bem, general, mas o sr. se manifestou contra o liberalismo, e o conceito disseminado de democracia é o da democracia liberal.
Não, senhor. Vejam, nós temos a laranja-lima, a laranja-pera, a laranja-bahia, que têm sabores diferentes, mas nem por isso deixam de ser laranjas. As próprias raças humanas são diferentes, existem cinco raças humanas. Assim também há democracias diferentes. Agora, o liberalismo morreu mesmo.

Mas que liberalismo é esse que morreu?
É o da Constituição de 1946, uma Constituição feita para responder ao nazifascismo, e que por seu excesso de liberalismo deu no que deu.

Então, a Constituição de 1946, não?
Não mesmo. O Estado tem que dispor de instrumentos para assegurar a segurança da sociedade. No mundo moderno, com suas complexidades, o Estado precisa defender a sociedade. Veja o caso de Israel, cercado de árabes por todos os lados. Talvez a Suíça, um país deste tamanhinho, não precise tanto, mas o Brasil é um continente, também precisa.

Bem, mas o sr. não considera que o máximo de segurança para o Estado corresponde ao mínimo de segurança para o cidadão?
Mas às vezes precisa ser assim. Veja, se não fosse, nunca haveria tanta guerra porque qual é o povo que deseja a guerra? O povo nunca quer a guerra. No entanto, ela pode ser eventualmente necessária para assegurar a própria defesa de uma sociedade.

Mas, general, o que é o Estado? O Estado foi criado pela sociedade para atender a seus interesses, e se o Estado passa a se sobrepor à sociedade, não se trata de uma deturpação?
Não, vejam, no início o homem se reuniu em grupos, em tribos, para se organizar e se proteger, e o Estado foi o instrumento criado para assegurar e aperfeiçoar essa defesa, quando os povos proliferaram. Porque havia problemas entre os povos, discordâncias, provocadas pelas diferenças de língua, de costumes, etc. Então, é absolutamente necessário que o Estado moderno disponha de instrumentos de defesa da sociedade.

Está certo, o Estado precisa defender a sociedade, o que ele não precisa é defender a si mesmo...
Não, senhores, o Estado precisa defender-se sim, contra os extremistas que desejam destruí-lo para implantar ideias que o totalitarismo consagra. Afinal, se o Estado não for efetivamente forte, o que é que vocês querem? Acabar com o Estado? Mas aí vem a anarquia.

Bem, então qual é a democracia do sr.?
O princípio básico é que todo poder emana do povo. Eu não gostaria de dizer democracia relativa, mas o fato é que democracia plena não existe.

O sr. tem afirmado que pretende aumentar a taxa de democracia do regime, digamos assim. Esse aperfeiçoamento que o sr. vislumbra inclui a independência entre os Poderes?
Mas é claro que sim. Aliás, sempre tem sido assim no Brasil.

Não, general, atualmente é o Executivo que decide tudo.
É claro, mas nós estamos dentro de uma Revolução. O que vocês querem é apagar tudo e dizer: daqui para frente vamos brincar de democracia. Bem, isso não é possível.

Contudo, se o sr. vai ampliar a taxa de democracia e restaura a independência entre os Poderes, a situação se modifica.
Vejam, a Revolução não vai acabar. Toda revolução tem uma fase de legalidade revolucionária. O fato é que fizemos uma Revolução em 1964 e ganhamos.

Certo, mas o que se tem entendido é que o sr. vai fazer um governo de transição para ampliar a faixa de democracia.
Olhem, vocês vivem dizendo que este é um regime de exceção...

Mas este é um regime de exceção...
Não, nós temos leis de exceção. Em 1964, nós poderíamos ter fechado o Congresso, não poderíamos? Pois bem, muitos que vivem hoje posando de democratas, sob os aplausos de vocês, queriam fazer coisas piores. Eu não quero citar nomes, mas há muitos fantasiados de democratas aí que participaram do regime mais ignominioso que eu já vi, o Estado Novo de Vargas, e que hoje posam de democratas, pedem democracia plena. No Estado Novo, sim, eu era cadete do Exército e tive conhecimento de torturas bárbaras, muito piores que estas que denunciam hoje, se é que estas existem mesmo. Meu pai estava na prisão e eu vi de perto o que era tortura.

O sr. tem razão nesse ponto, há muitos democratas fantasiados...
Olhem, o Brossard [senador e candidato à vice-presidência pelo MDB, derrotado pela chapa de Figueiredo], quando estava do nosso lado, em 1964, era secretário de Justiça do Rio Grande do Sol, ele queria invadir a Rádio Guaíba. Houve uma pendência lá, a Justiça deu ganho de causa à emissora e o Brossard desconheceu a decisão da Justiça e mandou a polícia invadir a Rádio Guaíba. Hoje, pede democracia plena.

Muito bem, general. Então, a democracia para o sr. compreende a independência entre os Poderes.
Sim.

Então, quando houver uma pendência entre dois Poderes, o terceiro poder é que resolve, certo?
Ah, não, porque cada poder tem independência na sua seara. Quando um se intromete na seara do outro está errado.

Mas é que há áreas matizadas, general. Há assuntos que são da competência do Executivo e do Legislativo, por exemplo.
Há, sim. Por exemplo, o orçamento. Quando o Legislativo dispunha de plena liberdade para mexer no orçamento, nós fizemos o levantamento de um número enorme de instituições fantasmas sustentadas pelo Legislativo, tá? E olhem, ainda hoje existem algumas.

No entanto, se o Executivo for julgar as pendências com os outros poderes, não haverá independência, nem democracia. Então, o sr. é favorável que o Judiciário seja o poder moderador nas pendências entre o Executivo e o Legislativo nos casos de pendências, de conflitos?
Sou. Aliás, o presidente Geisel fez isso. Vocês se lembram que ele não cassou aquele deputado, o Francisco Pinto [deputado do MDB condenado pelo STF a seis meses de prisão, com perda do mandato e de direitos políticos, por ter criticado o ditador chileno Augusto Pinochet]. Ele encaminhou o caso ao Poder Judiciário, que tomou as medidas que achou que devia tomar.

É verdade. Mas depois o presidente Geisel mudou de posição e passou a cassar mandatos.
Meu Deus, mas será que vocês não se lembram que nós estamos numa Revolução?

Mas, general, o Poder Judiciário agiu muito bem no caso do deputado Francisco Pinto, reconheceu que os limites razoáveis haviam sido ultrapassados. Por que não se continuou por esse caminho?
Porque estamos numa Revolução.

O sr. tem a intenção de modificar o processo em sua sucessão, ou seja, que a nação possa participar, elegendo diretamente o presidente da República?
Sou favorável a uma modificação, sim, esse é meu desejo.

Então o sr. é favorável à eleição direta para presidente da República?
Não, isso não. A eleição para presidente eu acho que deve ser indireta.

Mas então não é preferível o sistema parlamentarista, eleição direta do chefe de Estado e eleição indireta do chefe de Governo?
Há quem prefira isso. É o método francês, por exemplo.

E é democrático.
Olhem aqui, eu estudei profundamente o que vocês chamam de democracia francesa. Quando eles estão ameaçados de perder num distrito, o presidente da República muda o distrito, eles tiram uma cidade daqui, somam a outro distrito, subtraem em outro tal.

Mas, general, os franceses votaram uma Constituição que permite isso. É legítimo, é legal, portanto é democrático.
Pois há muita gente que não acha isso democracia.

E o resto da humanidade, ou sua maior parte, reconhece que o sistema francês é democrático.
Pois eu não acho. O general De Gaulle criou uma coisa chamada artigo 16, que cria um estado de sítio muito pior, muito mais discricionário que o nosso AI-5.

É diferente, general. Na França, eles organizaram um sistema de voto distrital que, adaptado aqui e ali, permite que os conservadores sempre estejam em maioria. O povo aprovou a Constituição. A maioria aprovou. Agora, se o presidente da República decide que um terço do Senado deve ser conservador, e então nomeia um terço do Senado, isso não é legítimo, nem democrático, ainda que seja legal.
Vocês estão torcendo os fatos, não venha me dizer que o sistema francês não é uma manipulação, porque eu estudei aquilo a fundo.

Não, general, é diferente...
Olhem aqui, se vocês vieram aqui para me convencer a derrubar o regime brasileiro, vocês podem desistir, porque eu não vou mesmo.

Não queremos convencê-lo, general. Nós estamos argumentando. Aliás, vocês militares fazem muito isso, usam um advogado do diabo na Escola Superior da Guerra, por exemplo, que vive contestando os argumentos do opositor, para ver se a tese dele se sustenta mesmo. E a nomeação dos senadores...
E o que é que tem nomear um terço do Senado? A rainha da Inglaterra não nomeia toda a Câmara dos Lordes, que equivale ao nosso Senado, e vocês não vivem dizendo que Inglaterra é uma democracia?

A Câmara dos Lordes é outra coisa, não tem poder revisor como o nosso Senado.
Tem, sim. E olhem, em 1930 se fez uma revolução no Brasil para acabar com as eleições a bico de pena, mas vejam as figuras de homens públicos da República Velha. Vejam o Rui Barbosa, o povo não o elegeu presidente da República.

Perdeu para o marechal Hermes da Fonseca.
Pois é, e que, apesar de ser um militar, não pode ser comparado ao Rui Barbosa, que fez uma campanha belíssima e não foi eleito. Então é preciso ter muito cuidado com essas objeções à eleição indireta.

O pai do sr. foi contra a Revolução de 30...
Foi sim. E no império, o imperador não nomeava todo mundo, e tudo não funcionou bem por tanto tempo?

A impressão que fica, general, é que para o sr. o povo não está preparado para votar.
E vocês me respondam, o povo está preparado para votar?

Bem, o povo reage diante de situações concretas. Às vezes há problemas que fogem ao controle do governo e o povo não reconhece, mas isso não é típico do Brasil. Acontece nos países mais adiantados também.
Não, o eleitor brasileiro ainda não tem o nível do eleitor americano, do eleitor francês. O Getúlio não fez uma ditadura sanguinária e acabou sendo eleito? Vocês sabem que no Rio Grande do Sul houve uma seca, e os eleitores decidiram votar contra o governo, por que não choveu? Um eleitorado não elegeu o Cacareco [rinoceronte do Zoológico de São Paulo]? Então uma coisa dessas tem cabimento?

Mas o sr. reconhece que o povo só pode aprender a votar votando?
É verdade, mas tudo isso tem que ser aos poucos. Vejam se em muitos lugares no Nordeste o brasileiro pode votar bem, se ele não conhece noções de higiene? Aqui mesmo em Brasília, eu encontrei outro dia, num quartel, um soldado de Goiás, que nunca escovara os dentes e outro que nunca usara um banheiro. E por aí vocês me digam se o povo já está preparado para eleger o presidente da República.

Como é que o sr. deseja encaminhar então a sua própria sucessão? Eleição indireta, mas com os delegados escolhendo livremente?
Escolhendo livremente. Vocês vejam a eleição do presidente dos Estados Unidos, que todo mundo pensa que é de direita.

É indireta, mas o povo todo participa, escolhe delegados com o mandato específico de elegerem o presidente.
Então, que seja assim.

O sr. é favorável à implantação desse sistema no Brasil?
Sim, eu sou.

O sr. vê algum defeito no sistema eleitoral norte-americano?
Para começar, eu sou contra o "lobby". Quando a General Motors começa a financiar a campanha de um senador, ah, então ele há não vai ser representante de um Estado, vai se representando da General Motors. Isso eu não posso conceber.

O sr. tem dito que se a Arena perder em novembro...
O que eu tenho dito é que a coisa ficará mais difícil se o MDB vencer, porque, vencendo, o MDB não vai querer ceder nada, e o que eu digo é que todos precisam ceder um pouco.

No que o sr. está disposto a ceder?
Isso dependerá das circunstâncias. Eu tenho recebido vários emedebistas aqui e eles aceitam dialogar, desde que se comece pelo fim do AI-5, do 477, das leis de exceção. Bem, assim não dá.

Bem, e no que o MDB deve ceder? No que o MDB está atrapalhando?
O MDB até hoje não se conscientizou de que ele também é um partido da Revolução e a contesta sistematicamente. Vejam, por exemplo, eles pedirem anistia ampla, geral e irrestrita. Então nós vamos anistiar assassinos, assaltantes de bancos? Outro dia pegaram um rapaz aqui em Brasília roubando um carro e ele respondeu: "Eu não estava roubando, estava expropriando". Se formos por aí, não teremos mais a figura do crime comum no Brasil.

O sr. tem dito que a anistia pode até encerrar um processo de abertura, mas não pode iniciá-lo. Isso quer dizer que o sr. admite a anistia, digamos, no final do seu mandato?
Eu não disse isso.

Mas o sr. admite essa possibilidade pelo menos como hipótese?
Eu não excluo nenhuma hipótese.

Considerando que só caminharemos para a abertura com a vitória da Arena, então se pode considerar que o povo pode votar em quem quiser, desde que seja com a Maria?
Não. O MDB é que está radicalizando. E aceita o diálogo desde que ele comece com o casamento da Maria. Vejam bem, se o MDB vencer, e somar a isso essa questão de Constituinte, bem, os militares não estão preparados para isso. E aí a coisa explode: ou eu expludo junto ou me componho com eles e vamos para um regime muito pior do que este.

Alguns analistas afirmaram, quando o sr. ainda não era candidato oficialmente, que o governo Figueiredo será militarmente fraco e politicamente fraco. Essa previsão é correta?
O que é que vocês acham hoje?

Bom, considerando que o sr. ainda não caiu, a análise não é correta.
Olhem, talvez essas análises estejam até corretas e meu governo venha a ser politicamente fraco e militarmente fraco. Mas eu quero pagar para ver.

General, o sr. acredita que as manifestações do tenente-coronel de Ponta Grossa refletem a posição de uma parcela expressiva do Exército?
Não. Ele feriu uma coisa que nós militares não aceitamos em hipótese alguma —a disciplina. E nem os amigos dele aprovaram, só uns dois ou três é que aprovaram. Mas o grande amigo dele, o general Aragão, não concordou com ele. Para vocês perceberem como isso é importante para nós, em 1954, eu era tenente-coronel durante a crise política, e fui procurar meu comandante, o general Cruz, que era amigo do Getúlio Vargas, e perguntei-lhe como ele estava vendo os acontecimentos. Ele quis saber porque eu queria saber, e respondi que era porque não gostaria de desobedecer a uma ordem dele. Depois ele se encontrou comigo e fez um sinal com o polegar para cima, quer dizer, não haveria razão alguma para que eu o desobedecesse porque ele também estava contra o Getúlio. Esse respeito à hierarquia eu aprendi com meu pai. Em 1932, meu pai comunicou ao ministro da Guerra que, se ninguém o prendesse, ele iria sublevar São Paulo contra Getúlio. Como ninguém o prendeu, ele foi sublevar São Paulo.

Geral, o sr. já sabe quem vai ser governador de São Paulo?
Não.

O sr. ainda não examinou o assunto?
Bem, examinar eu já examinei, mas a decisão ainda não foi tomada.

Mas o sr. pode nos dar um perfil do futuro governador paulista?
Não estou preocupado em montar perfil nenhum. Estou preocupado em selecionar alguém capaz de ajudar a Arena a vencer a eleição, ou de ajudar a Arena onde for possível.

Mas não é o sr. que tem de selecionar alguém competente para administrar bem o Estado?
E de que adianta um nome competente e perder a eleição?

Então o sr. vai selecionar administradores incompetentes só para ganhar a eleição?
Vejam bem, eu disse que vou selecionar, entre os mais capazes, gente capaz de ajudar a Arena a vencer. Eu não disse que vou selecionar administradores incompetentes.

O sr. não acha que o atual sistema de escolha de governadores é pior que o antigo, de eleição direta?
Eu acho que nos dois casos houve escolhas erradas. Mas sou favorável à eleição direta dos governadores.

Inclusive nesta safra de agora?
Nesta não, porque já não dá mais tempo.

Então a intenção do sr. é fazer as próximas eleições de governadores diretas?
Sim, eu tenho essa intenção.

O general argentino Alejandro Lanusse publicou um livro, "Mi Testimonio", em que ele diz que o general Juan Carlos Ongania foi afastado da presidência da Argentina porque tratava os civis como chefes de um governo militar, e os militares como se fossem chefes de Estado da Suíça. O sr. cometerá esse tipo de erro em seu governo?
Não. Eu não faço distinção entre civis e militares. Acho que os dois devem ser tratados igualmente. Os militares, por exemplo, devem se comportar de acordo com os regulamentos militares.

Mas o sr. não acha que as promoções no Exército estão sendo politizadas?
Não. A lei é muito clara —o presidente da República escolhe livremente o general de Exército entre os nomes que lhe são apresentados. O próprio presidente Geisel chegou a general de Exército caroneando dois candidatos, no governo Castello Branco, e ninguém falou nada. Agora, não está havendo politização das promoções. No tempo do Jango, o Alto Comando considerava cem coronéis para promoção ao generalato, e deste terço só uma parte é enviada para que o presidente escolha os novos generais.

Mas, general, o sr. não considera que o recente caso da carona no general Hugo Abreu foi uma decisão política?
Isso vocês devem perguntar ao presidente porque eu não falo com o presidente sobre esse assunto, que é da exclusiva competência dele.

No entanto, quando o general Cesar Montagna foi preterido, o sr. deu uma declaração no Rio defendendo a promoção dele, e dizendo inclusive que é amigo dele.
É verdade, o Montagna é como um irmão para mim.

General, e a liberdade de imprensa?
Vocês falam muito em censura, mas se esquecem que a censura começa na casa de vocês.

Na nossa casa?
É, vocês já viram algum jornal publicar alguma coisa que seja contra o interesse dos donos? Talvez um ou outro jornalista mais conhecido, como o Castelinho, possa publicar, mas a maioria, não acredito. Aliás a imprensa brasileira, como precisa publicar notícias todos os dias, quando não há notícias, tem uma tendência a interpretar as coisas com base em evidências que nem sempre correspondem à realidade. Por exemplo, aquela bandeirinha do Flamengo ali. O repórter vê e imagina que eu sou Flamengo, quando torço para o Fluminense. O Ibrahim Sued publicou uma nota assegurando que eu estava no campo torcendo e que saí indignado antes do jogo terminar porque o Flamengo estava perdendo. Eu nem sequer fui ao campo.

Algum tipo de controle interno da informação, no jornal, tem que haver, inclusive para evitar erros e abusos...
Ah, então vocês concordam que é preciso ter uma liberdade responsável.

Não, porque não existe liberdade irresponsável. Existe abuso, o que é outra coisa.
Não, existe liberdade irresponsável sim. Vocês da imprensa querem publicar coisas sobre o acordo atômico com a Alemanha, ou sobre a Binacional Itaipu, que naquele momento não devem ser publicadas. Mais tarde, sim.

O nosso critério não é esse, general. Algumas pessoas controlam o Estado e decidem que isso deve ser publicado e aquilo não. Ora, mas o que essas pessoas pensam pode não ser o que a nação pensa. Então, por que temos que aceitar o desejo dos que controlam o Estado?
Vocês pensam assim porque estão do lado de lá e só pensam na liberdade individual. Agora, passem para o lado de cá que vocês passarão a ver o conjunto que só daqui pode ser visto. Aí a situação muda.

Mas a opinião pública...
A opinião pública não existe, vocês é que a formam. Se vocês quiserem, vocês mudam a opinião pública.

General, a imagem do Brasil, no exterior, está muito desgastada pela experiência do Esquadrão da Morte.
Esse é um problema grave e complexo que tem origens na guerra dos tóxicos, na disputa de quadrilhas, na prostituição —é também um problema policial, mas de difícil solução.

No entanto, o governo, que se mostrou tão competente para prender os comunistas, por que não acaba com o Esquadrão da Morte?
E a polícia italiana, por que não descobre os sequestradores do Aldo Moro? E o FBI, por que não impediu a morte de tantos presidentes norte-americanos? Vocês pensam que isso é fácil? Contudo, dizer que o governo é responsável por essa situação é tão mentiroso como me atribuir a condição de torturador. Como disseram certas publicações estrangeiras, e como andam espalhando aqui dentro alguns indivíduos.

A violência policial é frequentemente contestada, não?
Observem o exemplo dos Estados Unidos. Lá, a polícia, de um modo geral, é até mais violenta que a nossa. Em qualquer batida, ela obriga o cidadão a espalmar as mãos contra a parede e coloca o revólver em suas costelas.

Mas lá, os crimes atribuídos à polícia não são tantos.
É porque os jornais de lá não fazem o mesmo escândalo quanto os daqui, nem imputam todo assassinato ao aparelho policial. De qualquer forma, esse é um problema que preocupa, e se não acabamos com ele, não é porque não queremos, mas porque ainda não pudemos.

Em seu governo, provavelmente vai recair o peso da lista de 23 desaparecidos que o cardeal [Paulo Evaristo] Arns encaminhou ao presidente dos Estados Unidos. O que o sr. pensa fazer?
Isso não é comigo. Eu, aliás, sou chefe do SNI (Sistema Nacional de Informações), um serviço de informações. O SNI é confundido com um órgão policial quando não é nada disso.

É que a imagem da SNI é antipática.
É porque vocês criam essa imagem.

Quando o sr. vai sair do SNI?
Não sei. Estou num cargo de confiança e, portanto, a decisão cabe ao presidente Geisel. Não pretendo, entretanto, ficar até o último dia do prazo de desincompatibilização. Aliás, se dependesse de mim, eu já teria saído há dois anos, porque só pretendia ficar dois anos aqui.

"Abertura é uma aspiração"

O general Figueiredo concorda que existe hoje no Brasil uma “aspiração nacional” pelas aberturas democráticas, mas, em relação à sua atitude perante o povo brasileiro, considera-se não um “elitista”, mas um “realista”.

Um jovem segura um cartaz em que se lê "Eu quero votar para presidente"  e outro, a frente, planta uma bananeira
Manifestantes durante a campanha pelas Diretas-Já, em 1984 - Gil Passarelli/Folhapress

Nesta segunda parte da entrevista que concedeu à Folha, o chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações) e futuro presidente da República afirmou que em relação às questões de democracia “há muita manipulação” e que as democracias “têm muitas facetas”.

O general disse ser favorável às manifestações estudantis “desde que elas não interfiram na vida da comunidade”, coisa que, segundo ele, não permite porque “não tem cabimento".

O futuro presidente da República afirmou que ainda nunca falou com o presidente Geisel sobre sua indicação para sucedê-lo, exceto no dia 29 de dezembro, mas acrescentou, “é claro que eu não ignorava o que estava se passando”.

Sobre as questões econômicas, Figueiredo disse “ topar” a privatização da Petrobras, mas afirmou que não existem no Brasil grupos financeiros com capacidade para comprá-la ou à Vale do Rio Doce. O general chefe do SNI voltou a defender a privatização da economia com uma ressalva: não entregar nada “para o empresário que é eficiente às custas do dinheiro do governo”, nem para os que “são eficientes por serem testas-de-ferro das multinacionais”.

“Eu não acho que sou elitista. Eu sou é realista”

Esta é a sequência do diálogo do general João Batista Figueiredo com os repórteres da Folha.

O sr. reconhece que há uma aspiração nacional pela abertura?
Sim, é verdade, essa aspiração existe.

Agora, general, o sr. dá a impressão de ter uma visão muito elitista do povoaquela postura do homem que fica no gabinete e sentencia o povo que não sabe votar.
Eu não acho que sou elitista. Eu sou é realista.

Multidão de pessoas de todos os tipos com cartazes a favor das eleições diretas
Passeata pelas Diretas-Já no Rio de Janeiro. A passeata teve início e final na Cinelândia - Folhapress

Mas o sr. pensa que o camponês da França vota conscientemente?
Claro que vota. Ele tem outro nível.

O sr. parece muito pouco encantado pelos aspectos, digamos, rituais da democracia…
Eu vou contar um episódio a vocês. Um grupo de oficiais brasileiros estava em Israel, uns dias antes da Guerra dos Seis Dias, e me contaram algo que os fará duvidar de coisas que vocês chamam de democráticas.

Mas Israel é uma democracia, até uma social democracia…
Pois é. Um oficial nosso se vestiu como árabe e o grupo brasileiro foi assistir a uma manifestação em Nazaré. Passou por eles um grupo de manifestantes do Partido Comunista contra o governo, depois os manifestantes do Partido Comunista a favor do governo, depois o partida contra a Golda Meyr, o partido a favor do Moshe Dayan, e por último um árabe carregando um cartaz pedindo a devolução dos territórios aos árabes. “Vamos entregar tudo para os palestinos”. Um oficial nosso perguntou ao oficial israelense se eles não temiam que um cartaz assim insuflasse os árabes, e ouviu como resposta que não havia problema, “aquele é um agente nosso…” Como vocês veem, há muita manipulação. As democracias têm muitas facetas.

O sr. nos diz que o povo ainda não está preparado para votar, mas o povo não tem culpa.
Olha aqui, nunca se fez uma pesquisa de mercado neste país para se saber quais as necessidades de pessoal qualificado. Algúem sabe quantos engenheiros nucleares o Brasil precisará ter nos próximos anos? Ninguém sabe. Então, o que acontece é que começa uma onda de engenheiro civil; começa outra de administrador de empresas, e os primeiros são contratados a peso de ouro, mas depois o mercado fica saturado de administrador de empresa; começa uma febre de comunicação e a coisa se repete. Daqui a pouco, vamos ficar como a União Soviética, onde todo mundo é formado, mas o economista sai de manhã, põe o diploma debaixo do braço e vai trabalhar com uma enxada…

Com isso o sr. quer dizer…
Enquanto isso faltam os técnicos médios. O meu filho, por exemplo, e eu tenho dois filhos engenheiros.

Algum deles também é primeiro de turma?
Um é primeiro, outro é segundo. Eles se formaram numa época de pico, quando as empresas iam nas escolas para contratar os primeiros de turma antes de formados. Pois bem, um dos meus filhos tem uma empresa no Rio. Ele tira 12 mil cruzeiros por mês, para sobreviver, e paga 18 mil cruzeiros a um técnico da sua equipe. O técnico ganha mais do que ele.

E o nível do ensino, general?
Olhe, quando começaram aquelas passeatas dos excedentes, pedindo para aumentar o número de vagas, por volta de 1963, eu fui ao meu comandante na Eceme [Escola de Comando e Estado-Maior do Exército], general Bizarria Mamede, e disse: “A primeira consequência disso vai ser a queda na qualidade do ensino”.

E dito e feito.
Claro. A qualidade do ensino no Brasil caiu. E não é só pelo aumento dos alunos, não, porque alunos não faltavam, mas, e os professores? Nós chegamos a ter um bom nível de ensino superior, professores importados, inclusive, mas com um súbito aumento de vagas não dava para manter o nível.

E os estudantes, general? O sr. acha razoável que a polícia fique reprimindo manifestações de estudantes nas ruas?
Não, porque não é função dela. Eu sou a favor de qualquer manifestação estudantil, desde que seja dentro do campus.

Mas aqui em Brasília a polícia reprimiu até dentro do campus.
Não, senhores, a polícia, não.

Pessoas em torno de um caixão sendo enterrado no cemitério
Amigos e familiares durante o sepultamento de David Souza Meira, funcionário da Companhia Costeira, morto pela polícia carioca durante passeata de estudantes contra a ditadura militar, no Rio de Janeiro (RJ), no dia 4 de abril de 1968 - Folhapress

Entrou, sim.
Quem entrou foi a Polícia Federal, mas para prender alguns agitadores que estavam se aproveitando das manifestações dos estudantes de Brasília, e eram agitadores mesmo, eu tenho provas aqui de que estavam vinculados a movimentos subversivos, tá?

Mas mesmo que não seja nas ruas, general. O sr. não acha que a polícia deve é acompanhar os manifestantes estudantes para protegê-los, como acontece em qualquer lugar civilizado?
Eu sou a favor das manifestações estudantis, desde que não interfiram com a vida da comunidade, como em 1968, quando eles viraram ônibus, botaram fogo num carro, atentaram contra a propriedade; isto eu não permito, não tem cabimento.

General, a polícia…
Olhem aqui, sempre que um estudante é preso, vocês fazem um escândalo, e quando um jornalista é preso vocês fazem um escândalo ainda maior.

Essa é uma reação natural, típica do “sprit de corps” que existe entre estudantes, jornalistas ou militares enquanto grupo…
Militares, não. Eu vi amigos meus há 30 anos sendo cassados, de alguns eu conhecia os pecados e achei que mereciam ser cassados. Nós militares não reagimos com “sprits de corps” quando sabemos que algum de nós transgrediu a lei. Agora, outros militares amigos meus foram cassados e eu achei que foi injustiça, outros também foram e eu fiquei em dúvida. Eu fiquei em dúvida.

“Reforma agrária não se faz por um apertar de botão”

Mas, general, nós nos referimos a uma reação típica, que existe em toda organização semelhante à dos jornalistas, de autodefesa, e da qual a organização militar não escapa.
É, talvez essa reação seja comum às organizações.

Temos curiosidade em saber se o sr. conversou alguma vez com o presidente Geisel sobre sucessão antes da sua escolha.
Nunca. Eu nunca falei com ele sobre isso, exceto no dia 29 de dezembro. É claro que eu não ignorava o que estava se passando. Eu fui ao presidente e disse: “Eu não sou imbecil a ponto de dizer ao senhor que não notei toda a movimentação em torno do meu nome”. Foi quando eu pedi a ele que pensasse bem.

E com o Humberto Barreto, o sr. conversou?
Não. O Humberto resolveu lançar o meu nome sem falar comigo nem com o presidente. Ele estava dizendo algumas coisas para o presidente há algum tempo, mas o presidente não o estava ouvindo, então ele decidiu por conta própria fazer aquilo para ver no que dava. Mas eu não sabia.

Pois, general, no dia da posse do presidente Geisel, um oficial do Exército apontou para o sr. e disse a um grupo de jornalistas: “Aquele ali vai ser o próximo…”. Esse projeto que o sr. tem exposto, de levar o capitalismo ao campo, inclui uma reforma agrária decente?
Reforma agrária não se faz por um apertar de botão. Antes de mais nada é preciso conscientizar o homem do campo sobre uma série de coisas. Inclusive os progressos tecnológicos do setor.

Mas todo país razoavelmente civilizado já fez reforma agrária
Por exemplo?

Estados Unidos.
Bem, mas vocês pensam que isso é simples? O problema agrário nos Estados Unidos levou à guerra com o México, a milhares de mortos, e à anexação de territórios mexicanos. A Califórnia, o Texas, o Novo México, custaram muito sangue aos Estados Unidos. Por sinal, nenhuma economia agrícola é mais dirigida pelo Estado que a norte-americana, nem mesmo a soviética.

E o sr. é contra isso?
Não. Mas vejam que lá nos Estados Unidos o governo chega para o produtor de soja e manda ele não plantar este ano porque a economia do país necessita que os preços sejam mantidos no mercado internacional. Juntos, fazem as contas na ponta do lápis, e o governo indeniza o produtor. No ano seguinte, entretanto, o plantio passa a ser conveniente, o governo fornece ao produtor sementes, instrumentos, estímulos, créditos, enfim, tudo que é necessário. Já no Brasil, há uma reação natural contra a interferência do governo no setor, e uma tendência a não acreditar nas previsões oficiais. Eu já recebi aqui vários produtores, eles não aceitam as sugestões do governo —como ocorreu recentemente, quando fazendeiros de Goiás insistiram em plantar milho, apesar da advertência de que teríamos uma seca anormal. Foi um desastre. Mas aqui há também os que se queixam de barriga cheia, como os pecuaristas, que vivem dizendo que, com os preços atuais da carne, vão desistir do setor para não morrerem de fome. Um deles, gaúcho, esteve comigo, e perguntei-lhe há quanto tempo sua família se dedica à pecuária. Ele respondeu que já faz 60 anos. Aí eu fui obrigado a perguntar porque eles não saíram do ramo até hoje. É claro que eles não saíram porque estão fazendo fortuna.

O problema é então de mentalidade?
Sim, porque há também aquele outro tipo de produtor, que ao ser informado de que, com um novo método de plantio, poderá ter mais de 40% de produção de soja por hectare, ainda assim prefere ficar com o método tradicional, porque com ele o investimento é menor e o lucro é bom. O raciocínio deles é simplista: se estou ganhando dinheiro assim, por que vou mudar? Assim não dá. Portanto, reforma agrária não é só dividir terra, mas também uma mudança de mentalidade, e mudar mentalidades é tarefa mais difícil. É bem verdade que no sul do país nosso produtor rural já está mais sensível às orientações técnicas, principalmente no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e o sul de Minas e de Mato Grosso. Mas, do centro para cima, as resistências ainda são muito grandes.

Mas, general, até a Argentina já fez reforma agrária.
Está certo, mas o latifúndio continua vivo lá até hoje. E vejam a extensão do Brasil. Insisto em que precisamos é de uma mudança de mentalidade. Até pouco tempo, por exemplo, o Rio Grande do Sul só usava os pampas para criar boi. O pecuarista ficava sentado na cidade e soltava as vacas no campo. Elas pariam e ele ganhava dinheiro. Durante muito tempo o gaúcho foi gigolô de vaca. Agora eles passaram a dar razão aos paulistas, e a perceber que a técnica precisa entrar na agricultura.

General, um grupo de “brazilianists”...
Em primeiro lugar, eu acho que esses “brazilianists” deveriam se preocupar é com os índios dos Estados Unidos da América do Norte, que eles não explicaram até hoje, em vez de vir aqui resolver os nossos problemas quando ainda não resolveram os deles.

Porém, neste caso, eles chegaram a exemplo interessante: analisando o que chamam de neofascismo latino-americano, constataram que a raiz do autoritarismo brasileiro está no poder dos conselhos atrelados ao Executivo. Um ano de legislatura do Congresso Nacional, por exemplo, tem menos influência sobre a economia brasileira que uma portaria de qualquer desses conselhos, ou da Petrobras.
E o que vocês querem fazer? Privatizar a Petrobras?

O sr. topa?
Eu topo. Mas relacionem aí quatro ou cinco grupos privados brasileiros que teriam dinheiro para comprar a Petrobras. E não é só a Petrobras, não. Quem é que tem dinheiro neste país para comprar a Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional? Quem tiver que se apresente. Que eu saiba, não há ninguém. Mas o empresário brasileiro é engraçado: a privatização de que ele tanto fala é na verdade doação. Bom, assim, eu já disse para o presidente Geisel, até eu quero. Vejam o caso da Borregard. Quando os noruegueses desistiram do negócio, apareceu um grupo paulista interessado em assumi-lo e que realmente tinha condições de tocá-lo. Mas aí entrou a política, os gaúchos reclamaram que isso era imperialismo paulista, que eles poderiam perfeitamente assumi-lo. Isso acabou sensibilizando o governo. Porém, o grupo não tinha recursos para comprar a parte dos noruegueses. O governo deu 200 milhões [de cruzeiros] para isso. Eles estão querendo mais 700 miilhões para não falir. Então como é que vamos privatizar a Petrobras ou a Vale do Rio Doce?

“Os trabalhadores precisam ter o direito de greve”

Quer dizer que aquela sua ideia de privatização acabou?
Não, continua. Mas entregar para o empresário que é eficiente às custas do dinheiro do governo, ou para os que são eficiente por serem testas-de-ferro das multinacionais, não podemos.

E a estatização?
Pois é. Como é que evoluiu a estatização? No governo Médici, eu me lembro, um empresário chegava aqui e conseguia financiamento para uma expansão. Daí a pouco ele vinha pedir mais, a situação está difícil, aquela coisa, e o Delfim intervinha, colocava gente dele para salvar a empresa, mas o governo já colocaram lá 200 milhões de cruzeiros e colocava mais 500 para salvar os 200... Uma bola de neve. Com isso, o governo foi obrigado a incorporar essas empresas. As piores empresas é que ficaram com o governo. Mas o que é que poderíamos fazer? Fechá-las, criando um problema social?

General, entre dois temas colocados em extremos, os empresários e os trabalhadores, os que têm mais e os que têm menos, o sr. tem falado sobretudo dos empresários…
É porque só me fizeram perguntas sobre os empresários, ora

E o sr. é mesmo a favor da livre negociação de salários entre empresários e trabalhadores?
Sou. Agora, sempre precisa ter alguém para arbitrar isso, porque entre um grupo de operários radicais que só querem aumento, e um grupo de “tubarões” que não querem dar aumento nenhum, é necessária a mediação do Ministério do Trabalho. Gerado o impasse, as partes vão à Justiça do Trabalho.

E esse direito de greve do sr., qual é?
Eu acho que os trabalhadores precisam ter o direito de greve, esgotados os outros recursos, as negociações. Mas não posso conceber a greve em setores vitais para a comunidade.

Por exemplo?
Distribuição de gasolina, transportes coletivos, bombeiros. Sem esses setores, o país para. Nesses casos, o interesse de 200 ou 500 pessoas não pode prevalecer sobre o interesse de milhares de usuários.

Mas assim não é justo. Então alguns podem fazer greve, outros não?
É justo. O direito de alguns cessa quando começa o direito de muitos. No exterior eles permitem isso, a Itália de vez em quando para, mas não devemos copiar aqui os erros dele.

Este texto faz parte da série Entrevistas Históricas, que lembra conversas marcantes publicadas pela Folha.

Entrevistas Históricas

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