Descrição de chapéu Artes Cênicas

Como atriz travesti brasileira abalou o teatro de Portugal ao protestar seminua

Keyla Brasil paralisou encenação de 'Tudo Sobre Minha Mãe' para criticar escolha de homem para papel de mulher trans

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Lisboa

O protesto de uma travesti brasileira sacudiu o universo teatral de Portugal e colocou a representatividade de artistas transgênero no centro do debate no país.

A atriz e performer trans Keyla Brasil, que trabalha em Portugal
A atriz e performer trans Keyla Brasil, que trabalha em Portugal - Reprodução/Redes sociais

Na última quinta-feira (19), a atriz Keyla Brasil invadiu uma apresentação da peça "Tudo sobre Minha Mãe", no Teatro São Luís, em Lisboa. Ela subiu ao palco seminua e fez um discurso contra a contratação de um homem cisgênero —isto é, que se identifica com o gênero com qual nasceu— para representar Lola, uma das personagens trans do espetáculo.

"O que está acontecendo agora é um assassinato e um apagamento das identidades travesti. Por que não contrataram duas pessoas trans para fazer as personagens?", questionou.

"Sabem por que eu trabalho como prostituta? Porque não temos espaço para estarmos neste palco, neste lugar sagrado", afirmou, olhando para a plateia.

Keyla dirigiu-se também ao ator André Patrício, que interpretava Lola. "Transfake. Desce do palco! Tenha respeito por esse lugar", disse ela, que pediu a Patrício que não voltasse a repetir o papel nas próximas encenações.

A sessão foi então encerrada, mas os vídeos com a ação da brasileira rapidamente ganharam as redes sociais e, em seguida, as páginas dos jornais, que publicaram artigos de opinião acalorados, tanto contra quanto a favor da atitude de Keyla.

Em entrevista à Folha, a atriz afirmou que o protesto foi organizado por artistas trans de diferentes nacionalidades. Eles teriam tentado, sem sucesso, dialogar com a produção do espetáculo.

"Não foi um monte de travestis que decidiu subir no palco e acabar com o espetáculo do povo", disse. "Tentamos conversar. Falamos para não fazerem o transfake. É imoral sermos representadas como alegoria. Quando colocam um homem vestido de mulher e dizem que é uma travesti, é uma forma de nos invisibilizar."

A atitude dividiu o meio cultural. Entre os críticos, muitos afirmaram que o protesto foi violento e desrespeitoso. Alvo da mensagem no palco, o ator André Patrício mostrou-se incomodado com a ação, que teve como desfecho sua substituição. A personagem passou a ser interpretada pela atriz trans portuguesa Maria João Vaz, enquanto Patrício passou a ter outro papel.

"Senti-me violentado e castrado na minha arte, no meu trabalho. Também nós, trabalhadores da cultura, cis ou trans, somos uma minoria. (A forma escolhida de protesto não foi a adequada porque me desrespeita e ao meu empenho enquanto profissional, que é exatamente o direito pelo qual lutam, por mais oportunidades e respeito. Fazer-se ouvir é um direito. Rasgar é uma agressão", afirmou em suas redes sociais.

Em nota, a companhia Teatro do Vão afirmou que deveria ter "tomado outra opção", mas ressaltou o "gesto inédito" de ter uma atriz trans na montagem desde o princípio. É que a outra personagem trans da peça, Agrado, já era interpretada uma artista trans, a brasileira Gaya de Medeiros.

À direita, a atriz trans Keyla Brasil protesta contra a falta de representatividade na peça 'Tudo Sobre Minha Mãe’, com André Patrício, de vermelho
À direita, a atriz trans Keyla Brasil protesta contra a falta de representatividade na peça 'Tudo Sobre Minha Mãe’, com André Patrício, de vermelho - Reprodução/Redes sociais

Usado pelas ativistas no protesto, o termo "transfake", antes pouco conhecido, acabou entre os assuntos mais comentados do Twitter no país. No Brasil, a expressão foi introduzida em 2016, com o movimento "Representatividade Trans Já".

Essencialmente, "transfake" designa a prática de artistas cisgênero se apropriarem da representação de personagens trans. Trata-se ainda de uma referência à outra prática considerada discriminatória no universo cultural, o "blackface", quando artistas brancos recorrem a pinturas corporais para representar personagens racializados.

A escritora e roteirista brasileira Freda Paranhos, que ajudou a idealizar e organizar o protesto, diz que a discriminação contra as artistas trans ganham outras complexidades entre aquelas que são imigrantes.

"Somos atravessadas por diferentes questões. Falando no caso da Keyla Brasil, além da transfobia, ela enfrenta a questão da nacionalidade brasileira e por ser uma pessoa racializada", diz. "O acesso para nós é negado mais facilmente."

Em meio a manifestações de apoio, Keyla também sofreu uma série de ataques com ofensas racistas e transfóbicas, incluindo ameaças de morte e de agressão física. Por segurança, ela diz que precisou sair de Lisboa.

A artista, que vive em Portugal há cinco anos e costuma se apresentar em performances pelas ruas de Lisboa, diz que o medo de represálias não vai interromper suas ações. "Quem é travesti lida com a violência real 24 horas por dia, tanto em pequenos atos quanto em grandes proporções. Sei que vou estar sempre exposta e que posso, a qualquer momento, ser agredida."

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