Descrição de chapéu

Pelé definiu o futebol como arte e fez do jogo um pilar cultural do país

Para quem nasce agora, será preciso afirmar que o jogador foi o maior personagem da cultura brasileira em todo o século 20

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Fotografia de Marcio Scavone

Pelé, retratado pelo fotógrafo Marcio Scavone Divulgação

Rio de Janeiro

Estão na internet as imagens que gravaram o milésimo gol de Pelé, morto na semana passada, aos 82 anos, em decorrência de um câncer. A reprodução do fato histórico, ocorrido às 23h23 do dia 19 de novembro de 1969, tem agora o estatuto de um filme clássico sobre o maior personagem do futebol-arte de todos os tempos.

Foi logo numa cobrança de pênalti contra o Vasco da Gama, time para o qual Pelé torcia desde a infância. Aos 34 minutos do segundo tempo, o goleiro Andrada viu o atacante do Santos caminhar em direção à bola e, desesperado, gritou três vezes "vou catar, vou catar, vou catar!" —em vão.

O goleiro Edgardo Andrada, do Vasco, leva o milésimo gol de Pelé em cobrança de pênalti, no estádio do Maracanã, em 1969 - Arquivo do Estado-Fundo Última Hora

Pelé disparou o grosso petardo no canto esquerdo de Andrada para fazer seu gol mil. De tanto se esticar, Andrada parece tentar alcançar a bola até agora. Ao atingir aquela marca excepcional, o ídolo do Santos se mostrava também ser um jogador-artista de exceção. Da arquibancada, o Maracanã lotado invadiu o campo para carregar nos ombros o rei do futebol. Pelé estava mesmo acima das paixões clubísticas.

Poucas vezes um gol de pênalti foi tão bonito. A cena daquele filme mostra o corpo de Andrada gravado no ar, sugerindo a dramaticidade de uma pintura. Também plástico, é o efeito da bola, que estufa a rede e morre debaixo das traves, parecendo pedra.

No dia seguinte, o vascaíno Carlos Drummond de Andrade, poeta-maior, saudou o maior jogador de todos os tempos, em crônica publicada no Jornal do Brasil.

"A obra de arte, em forma de gol ou de texto, casa, pintura, som, dança e outras mais, parece antes coisa-em-ser da natureza, revelada arbitrariamente, quase que à revelia do instrumento humano usado para a revelação. Se a obrigação é aprender, por que todos que aprendem não a realizam?", perguntava o escritor.

Drummond atinava ali para a linguagem própria do futebol, diferente de outras manifestações artísticas. Assentada em regras e procedimentos particulares, a gramática do futebol é universal. Atado à língua portuguesa, Drummond recorreu à ironia ao perceber a tarefa hercúlea do escritor. Poderia escrever mil livros e nunca faria mil gols.

Pelé foi um dos expoentes do futebol-arte, essência da seleção brasileira tão almejada na atualidade. A expressão designa um modo inventivo, irreverente e plástico de jogar bola, valorizando o talento individual dos jogadores.

Pelé, no ataque do Santos, no jogo em que fez seu milésimo gol, contra o Vasco, no Maracanã, em 1969 - Agência O Globo

São exemplos de futebol-arte a bicicleta de Pelé, no Brasil cinco a zero contra a Bélgica, em 1965 —a fotografia do lance, feita por Alberto Ferreira, é estimada em US$ 1 milhão. Ou, então, o célebre gol que pavimentou a trajetória do rei da bola como tricampeão do mundo.

Na final da Copa de 1958 contra a Suécia, quando tinha só 17 anos, Pelé matou a bola no peito dentro da grande área, deu um chapéu no zagueiro adversário e emendou um chute fortíssimo, afundando as redes.

Pelé foi agente de toda a experiência estética do futebol. De um lado, com o espetáculo, de dribles, fintas e chutes cheios de efeito. De outro, com a rispidez das divididas e das cabeçadas. Mas a relação entre o esporte e a arte ganha novo sentido fora do campo, diante do espectador.

Fora dos gramados, o rei do futebol estreitou laços com artistas. Emprestou seu gênio criador para a arte, compondo canções e participando de filmes. Ou exercendo fascínio em astros internacionais. Em 1966, Pelé, então bicampeão mundial, desembarcou na Inglaterra com a seleção brasileira para disputar a Copa do Mundo.

Quando esteve em Liverpool, os Beatles, que também já tinham fama internacional, foram tietar o rei do futebol e tentaram tocar para ele, mas foram barrados pelos seguranças da concentração. Onze anos depois, Mick Jagger, dos Rolling Stones, foi até o vestiário do Cosmos, de Nova York, cumprimentar Pelé, selando uma admiração que se estenderia no tempo.

Já o artista plástico Andy Warhol, expoente da arte pop, disse que a fama de Pelé não duraria 15 minutos, mas 15 séculos, tendo feito uma serigrafia com o retrato do jogador. Artistas e atletas muito se assemelham, manipulam os afetos do espectador, emocionando plateias e torcidas.

pelé com bola
Pelé em obra da série 'Athletes Series', de Andy Warhol - Christie's Images

De certa forma, Pelé antecipou o modo como arte e esporte se relacionam na cultura contemporânea. No século 21, já não há mais Beatles e o rock dos Rolling Stones já não afeta tantas pessoas como no passado. Pelé —e, agora, Messi e Cristiano Ronaldo—, ao contrário, são grifes planetárias, que provocam discussões universais.

Delimitado pelos Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo, dois eventos mundiais, o esporte é a verdadeira cultura global, enquanto a produção artística só se pulveriza, em nichos de consumo e plataformas de streaming.

Universal como a linguagem futebolística, Pelé exportou o futebol brasileiro —e o próprio Brasil. Vestindo a camisa da seleção, o rei do futebol se tornou símbolo nacional e refundou a identidade nacional brasileira no século 20.

Sob o plano político, inseriu o Brasil no mundo globalizado, antes mesmo do advento da internet. Trouxe sua nacionalidade junto à própria imagem, num tempo em que as pessoas não assistiam às partidas nos estádios gravando vídeos para as redes sociais. No livro "Nações e Nacionalismo desde 1870", o historiador britânico Eric Hobsbawm explicou a relação entre o processo de globalização e o futebol de seleções.

"A imaginária comunidade de milhões parece mais real na forma de um time de 11 pessoas com nome", ele escreveu. "O indivíduo, mesmo aquele que apenas torce, se torna o próprio símbolo de uma nação."

Em vida, Pelé já se comportava como um ser intemporal. Quem amava futebol sem ter visto o atleta jogar logo aprendia que um mineiro de Três Corações jogou pelo Santos e foi maior do que todos os jogadores.

Para quem nasce agora, será preciso dizer que Pelé foi o maior personagem da cultura brasileira do século 20.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.