Descrição de chapéu Alalaô

Como o 'Parangolé' de Hélio Oiticica resume o Carnaval como asa-delta para o êxtase

Encontro com a Mangueira, seus carros alegóricos e fantasias, transformou a obra do artista plástico, durante a ditadura

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'Parangolé', de Hélio Oiticica

'Parangolé', de Hélio Oiticica Reprodução

Recife

Tudo é o parangolé. Atar as duas pontas do mesmo tecido, até que pano e paisagem sejam uma superfície só —a paisagem, ela mesma. Unir o mar ao morro, o Rio de Janeiro todo, o verão num único monocromo.

O parangolé desassocia a visão, concentrando nele mesmo todos os elementos que se apresentam ao olhar. É uma certeza, euforia carnavalesca, e um objeto sem nome, se Hélio Oiticica não o tivesse chamado de "Parangolé".

Homem veste um 'Parangolé' criado por Hélio Oiticica - Projeto Helio Oiticica/Reprodução

Por não ser estático, é também incerto, malemolente. Um objeto que no ar insinua curvas, vértices, vórtices. Suas cores se avivam no espaço aberto, pela indeterminação da dança, o samba. O Carnaval é o parangolé, e o parangolé é o Carnaval.

Em 1964, Oiticica subiu o morro da Mangueira pela primeira vez, enfastiado com a vida burguesa que levava. Na companhia do escultor Jackson Ribeiro, o artista plástico encontrou na quadra da escola de samba uma vitalidade transgressora antes desconhecida.

Ele se deslumbrou com os carros alegóricos e com a costura de adereços e fantasias. Passou, então, a frequentar o morro, aprendendo a sambar com Mestre Miro. Tempos depois, já desfilava pela verde e rosa como passista.

Numa estilização da experiência momesca, Oiticica condensou a visualidade dos desfiles, transformando um pano numa capa para ser vestida. O efeito visual almejado se daria com a capa em movimento, o corpo dançando e espalhando a cor no ar. O parangolé não seria, portanto, um quadro, uma escultura ou uma instalação.

O livro "Qual É o Parangolé?", editado em 2015 pela Companhia das Letras, reúne ensaios de Waly Salomão, poeta e amigo de Oiticica, sobre a vestimenta e sua estética. Segundo Salomão, a pergunta do título da obra era repetida à exaustão nas ruas do Rio de Janeiro nos anos 1960. Tão indeterminada quanto o próprio objeto, a expressão pode agregar diferentes significados. "O que é que há?" "Qual é a parada?" "Como vão as coisas?"

Waly Salomão pensa o "Parangolé" bem ao seu modo exclamativo e verborrágico, com parágrafos caudalosos que atropelam frases uma em cima da outra. Logo na introdução do livro, ele avisa que se valeria de "um estilo enviesado, uma conversa entrecortada igual ao labirinto das quebradas dos morros cariocas, zigue-zague entre a escuridão e a claridade".

Sob o aspecto estilístico, sua prosa poética tenta mimetizar o objeto de estudo, o "Parangolé". Afinal, o tecido no ar, como observa o poeta, tem duas dimensões arquitetônicas. A primeira se refere ao brutalismo, à simplicidade de um só pano em movimento. A segunda, e mais importante, é a insinuação da estrutura da moradia das favelas.

O "Parangolé" emula a organicidade dos barracos, que se erguem a partir das noções de improviso e contingência. De modo análogo, a dança, que opera o efeito geométrico e cromático, também se assenta no improviso, traço coreográfico a um só tempo brasileiro e contemporâneo.

Por isso, o "Parangolé" funciona como um produtor de afetos no tecido social. No samba, o improviso é um contrato de confiança entre o brincante e o espectador. Acertado o pacto, se produz um passo original, um efeito inventivo que ocupa o espaço, afirmando a criatividade de quem dança. O passo improvisado, porém, pode ou não reincidir no tempo. O "Parangolé" tensiona, desse modo, os limites entre as artes plásticas e cênicas.

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Hélio Oiticica desfila na escola de samba Estação Primeira de Mangueira, no Rio de Janeiro, na década de 1960 - Projeto Hélio Oiticica/Divulgação

Nesse sentido, a criação de Oiticica tem filiação inequívoca com a teoria do não-objeto, conceito formulado por Ferreira Gullar, em 1959, que estruturou o movimento neoconcreto. Ainda que seja possível admirar os passos do brincante, não existe, no "Parangolé", a relação entre objeto e espectador.

Ao contrário da pintura ou da escultura, a obra se alicerça sem um suporte, o que Waly Salomão chama de "estrutura-ação". A obra de arte só existe na vivência —a cor no ar. O espectador, emancipado, se torna o participante, que cria e vive o "Parangolé", sem hierarquia entre corpo e tecido.

É provável que Salomão e Oiticica tenham se conhecido em 1967, durante a exposição "Nova Objetividade Brasileira". Um ano depois, os dois estiveram juntos na manifestação "Apolicapopótese", em que sambistas e passistas da Mangueira desfilaram no Aterro do Flamengo.

Os laços entre os dois viriam a se estreitar durante os anos 1970, quando o artista plástico estimulou a publicação dos primeiros escritos do poeta. A amizade entre a dupla teria como pano de fundo a tropicália, movimento de que Oiticica foi participante, e Salomão, um espectador-participante.

Segundo Salomão, o "Parangolé" era uma antevisão da paisagem. Se, como observado, o "Parangolé" concentra os elementos dispostos ao olhar, o tecido é a um só tempo a interposição na realidade imediata e a síntese na realidade, ela mesma.

É como se a cor no ar, interposta à paisagem, nela se diluísse. Por consequência, o corpo, sempre em movimento, se volta para o outro, num deslocamento de seu eixo. "Je est un autre" —"eu é um outro", diria o poeta francês Arthur Rimbaud.

Ao corpo, "a estrutura-ação" é, nas palavras de Salomão, uma experiência "suprassensorial". Fora dos limites da moldura, os elementos do visível —cores, luzes, sombras e reflexos— se relacionam com o "feixe total dos sentidos". Do mesmo modo, observadas do alto, as alas de uma escola de samba se dispõem como blocos cromáticos independentes e comunicantes. Mas, além da experiência sinestésica, o "Parangolé" é uma intervenção política.

Oiticica era capaz de unir o samba da Mangueira ao rock de Jimi Hendrix, dois mundos unidos pela irreverência. "Call Me Helium" —"me Chame de Hélio", em português—, pedia o lendário guitarrista, mencionando o gás nobre, levíssimo, homônimo ao artista. Insuflado, também flutua no ar o "Parangolé", despertando seu caráter hedonista. O "Parangolé" é um convite ao gozo e à mundanidade, prevendo, em sua experiência —palavra tão cara a Hendrix— o desregramento dos sentidos.

Subversivo, era nos anos 1960 uma ameaça à ordem imposta pelo regime militar. Em 1965, Oiticica convidou passistas e ritmistas da Mangueira para exibirem sua nova invenção na mostra "Opinião 65", no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

O artista desejava que a escola entrasse no museu sambando, tocando e espalhando a cor no ar, mas a direção do MAM impediu o desfile da escola, numa atitude preconceituosa, própria do circuito das artes plásticas.

Apesar da indignação, o artista conseguiu ali a prova do incômodo que causava ao valorizar em seu trabalho uma expressão popular, o Carnaval. Também antevia o descompasso entre as inquietações da arte institucional e a cultura que brotava das ruas. "Museu é o mundo, é a experiência cotidiana", ele dizia.

Com réplicas do 'Parangolé' de Hélio Oiticica, passistas da Mangueira abrem a 22 ª Bienal de São Paulo - Ormuzd Alves/Folhapress

Em alguns modelos de "Parangolé", Oiticica bordou dizeres políticos. "Da adversidade vivemos", "estou possuído" ou "incorporo a revolta". Nos dois últimos casos, o artista fazia menção à espiritualidade das religiões de matriz africana, discriminadas pela história e homenageadas neste ano pelo enredo da Mangueira, "As Áfricas que a Bahia Canta".

Oiticica ressaltava, todavia, que a experiência "suprassensorial" do "Parangolé" era um apelo à imanência e não se relacionava com a religiosidade. Desse modo, o "Parangolé" é também político por ser um chamado ao aqui e agora. "O 'Parangolé Pamplona' você mesmo faz/ O 'Parangolé Pamplona' a gente mesmo faz", diz a canção "Parangolé Pamplona", de Adriana Calcanhotto, no disco "Maritmo", de 1998.

Lá está a cantora, na capa do disco, rodopiando em seu "Parangolé". Na época da turnê, a performance tomaria conta dos palcos nos últimos minutos da canção. Contra o branco e o silêncio da página, o poema "Parangolé Pamplona" dispõe blocos cromáticos —"verde/ rosa/ branco no branco no preto nu".

Ligado o som, ouvimos a batida do maracatu e as bases eletrônicas que reforçam a sensação do transe, o mesmo desregramento dos sentidos provocado pela cor no ar. Acima de tudo, o "Parangolé", definido por Haroldo de Campos como "asa-delta para o êxtase" potencializa a experiência, para que o corpo em movimento se embriague com as sensações no "pleno ar/ puro hélio", como diz a canção.

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