Como Deborah Levy narra envelhecimento e apartheid em sua 'autobiografia viva'

Autora sul-africana engrossa o coro das mulheres que romanceiam a própria história para discutir política de gênero

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ilustração de mulher com vaso de plantas que cobre seu rosto

Ilustração de Rafaela Pascotto para a capa de 'Bens Imobiliários', livro de Deborah Levy Rafaela Pascotto/Divulgação

São Paulo

Deborah Levy não quis esperar a velhice para escrever sua autobiografia. Aos 63 anos, a escritora sulafricana publica pela primeira vez no Brasil a história de sua vida, marcada pela infância na África do Sul do apartheid, a adolescência como imigrante-exilada na Inglaterra e a vida adulta com um divórcio e a luta para escrever sob a morosidade da vida familiar

Ela definiu o projeto como uma autobiografia viva. "Eu queria me afastar da ideia empoeirada de autobiografia e do tom de sabedoria de quem está no fim da vida e olha para os erros da juventude", afirma a autora, em entrevista por videoconferência.

É uma empreitada em três volumes curtos que misturam relato de viagem, política de gênero, filosofia e, claro, memórias, mas sem se preocupar com uma cronologia rígida ou detalhes minuciosos

A escritora sul-africana Deborah Levy
A escritora sul-africana Deborah Levy - Divulgação

Na onda da vencedora do Nobel do ano passado, Annie Ernaux, Levy engrossa o coro das mulheres sob o guarda-chuva —que a essa altura mais parece um guarda-sol— da autoficção, gênero dos autores que se misturam às mentiras que narram.

O escopo inclui a inglesa Rachel Cusk —processada pelo ex-marido por expor partes da história do casal em seus livros—, Sheila Heti com seu "Maternidade", Marguerite Duras, interlocutora constante de Levy, e Anne Wiazemsky, ex-mulher de Jean-Luc Godard que narrou o casamento com o diretor francês.

Levy resiste ao rótulo e afirma que os escritores homens sempre falaram de si mesmos sem essa etiqueta, mas diz ter afinidade com a autoficção, lembrando Virginia Woolf e o seminal "Um Teto Todo Seu".

"Coisas que Não Quero Saber" abre a trilogia com a infância da autora, dividida entre Joanesburgo, Durban, também na África do Sul, e Londres. O pai de Levy, ativista do Congresso Nacional Africano —o CNA de Nelson Mandela—, ficou preso dos cinco aos nove anos da autora, período em que ela viveu com a madrinha e frequentou a escola de freiras.

A prisão do pai veio na forma de trauma para Levy, que não conseguia falar e usava a escrita como uma forma de dar vazão aos pensamentos.

O racismo do apartheid dava as caras a todo momento, mesmo pelo olhar infantil da branca Levy. A alfabetização dela se desvela com placas que proibiam negros de se banharem nas praias, destinadas aos brancos.

É nesse tipo de memória política que Levy acredita que reside a força da sua autobiografia. Como uma Ernaux de menor repercussão no circuito —e bem mais pessoal—, Levy dá pinceladas na história de um drama nacional ao contar sua vidinha de criança entre carinhos de uma empregada negra ora chamada de Maria, nome pronunciável para brancos, ora referida pelo seu verdadeiro, Zama.

A toada política esfria ao longo dos livros. Vislumbres da greve dos mineiros ingleses de 1974 se misturam à adoração da adolescente Levy pelo artista Andy Warhol e à convivência com Farid, au pair comunista da jovem e do irmão mais novo, Sam, quando a família zarpa para a Inglaterra depois da soltura do pai.

"A autobiografia viva não é só sobre a narradora", diz Levy, distanciando a personagem de si mesma, "mas sobre outras personagens, outras subjetividades". "Não é uma conversa de bar."

"O Custo de Vida" e "Bens Imobiliários", segundo e terceiro volumes da trilogia, mergulham na vida adulta da escritora. Passa longe de fofocas da papelada do divórcio que a poriam na barra da saia de Rachel Cusk —Levy, aliás, mal cita seu ex-marido.

Mas sobra espaço para a vida marital dos amigos. Um deles, criticado por Levy, só se refere às mulheres pelo nome depois que se divorcia delas. Antes disso, todas se chamam "minha esposa". Outra amiga, também mal vista pela autora, se envolve com um homem mais velho e casado. A autora não economiza no julgamento.

"Para escrever personagens mais livres, você precisa se interessar pelo que elas pensam, pelos problemas delas e pelas estratégias que elas usam para viver uma vida mais próxima do que elas desejam", diz.

Em meio a tantos microdramas, a autora trava uma guerra para se manter produtiva enquanto refaz um lar do zero para suas filhas —e não esconde a necessidade de escrever para pagar as contas.

Envelhecer, na trilogia autobiográfica da sul-africana, passa tão longe de uma sentença de fim da vida quanto de um renascimento clichê de um livro de autoajuda.

Coisas que Não Quero Saber

  • Preço 54,90
  • Autoria Deborah Levy
  • Editora Autêntica
  • Tradução Rogério Bettoni e Celina Portocarrero

O Custo de Vida

  • Preço 54,90 (121 págs.); R$ 38,90 (ebook)
  • Autoria Deborah Levy
  • Editora Autêntica
  • Tradução Adriana Lisboa

Bens Imobiliários

  • Preço 59,80 (188 págs.); R$41,90 (ebook)
  • Autoria Deborah Levy
  • Editora Autêntica
  • Tradução Adriana Lisboa
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