Descrição de chapéu
Livros

Annie Ernaux narra a vida reduzida ao desejo em 'Paixão Simples'

Nobel de Literatura conta o desespero tão humano de nunca se sentir completo e encontrar satisfação apenas por instantes

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Iara Machado Pinheiro

Crítica literária, tradutora e pesquisadora na Universidade de São Paulo

Paixão Simples

  • Preço R$ 54,90 (64 págs.)
  • Autoria Annie Ernaux
  • Editora Fósforo
  • Tradução Marília Garcia

Para Annie Ernaux, basta um substantivo e um adjetivo, "Paixão Simples", para nomear o relato do seu estado de enamoramento, o processo estranho de retorno à banalidade da vida e o momento em que, enfim, é possível depois se destacar da experiência e colocá-la em perspectiva.

A lucidez e a precisão da narrativa de uma mulher que perde o chão por amor revelam que este é um livro de uma grande escritora, até para quem poderia não saber que se trata da ganhadora mais recente do prêmio Nobel de Literatura.

annie ernaux
Annie Ernaux em coletiva de imprensa antes de seu discurso no prêmio Nobel de Literatura - AFP

Dá para ver que é um livro de uma grande escritora porque tudo é claro e direto, sem subterfúgios. E assim o extremamente particular, vivido à flor da pele e em primeira pessoa, se entrelaça a alguma coisa que concerne à vida de modo mais geral: o embate tortuoso entre arbítrio e fantasia, a dificuldade própria de estar em contato com a realidade.

É ainda uma história sobre esse desespero humano, talvez mais velho que o mundo, de nunca se sentir completo, de ter diante de si um objeto desejado e não encontrar, por mais de poucos instantes (no melhor dos casos), a satisfação que os devaneios querem nos fazer crer que é possível.

"Paixão Simples", publicado originalmente em 1991, é aberto com uma epígrafe de "Fragmentos de um Discurso Amoroso", de Roland Barthes; uma espécie de glossário da representação do amor em registros diversos, como a literatura, a psicanálise e a filosofia. O trecho escolhido pela escritora francesa é parte do verbete dedicado ao obsceno, no qual Barthes diz que fotonovelas são mais obscenas que os livros do Marquês de Sade.

É essa a obscenidade que a escritora descortina. Embora a narrativa seja aberta com uma cena de ejaculação, o caráter verdadeiramente explícito está na descrição do modo como a miragem de uma pessoa amada pode subjugar e desestruturar, subtrair a graça de tudo aquilo que não concerne o destinatário do amor.

Ao narrar sua paixão, no entanto, Ernaux não busca na própria história explicações para uma disposição ao arrebatamento, nem tenta garantir linearidade ao encontro com o homem que cava um antes e um depois em sua vida. Menos que extrair algum esclarecimento existencial da intensa experiência de entrega, o que importa é outra coisa: "Talvez os únicos dados a se levar em conta sejam materiais".

Uma premissa paradoxal, considerando que o material costuma ficar em segundo plano quando o tempo perde um referencial comum e passa a ser medido pela oscilação entre a falta e o impulso incontrolável.

É com esse paradoxo que a autora constrói uma história em segmentos. Depois de um tipo de prólogo no qual afirma que a escrita deveria se aproximar de um "sentimento de angústia e estupor, da suspensão de julgamento moral", a obsessão amorosa é apresentada pelo relato da rotina de encontros e do modo como sua vida se reduziu à espera e ao vazio que imediatamente sucedia a sempre parcial realização do desejo.

Após delinear o ritmo ditado pelo apetite insaciável, aparecem os traços físicos e a forma de existir desse homem por quem se apaixonou, a agonia de quando os encontros se tornam mais espaçados, o fim, a resistência de deixar para trás essa vida movida por um desejo tão imperativo.

Os segmentos têm uma toada fragmentada, enfatizada por parênteses, notas de rodapés da própria escritora e por fatias de espaços vazios ou parágrafos que começam com letras minúsculas. Ainda que sejam elementos sem um aparente significado unívoco, eles se encaixam porque neste enxuto livro as partes dispersas parecem justificadas por uma inequívoca necessidade de narrar.

Como as outras obras da autora lançadas pela editora Fósforo —"Os Anos", "O Acontecimento", "O Lugar", "O Jovem", "A Vergonha"— "Paixão Simples" segue a linha de títulos sintéticos, objetivos, e no entanto comprimindo alguma coisa de alusivo.

Dessa vez, no lugar do artigo há um adjetivo, e é um adjetivo intrigante porque contrasta com o caráter penoso do que é narrado. Mas é esta a força do livro: separar-se de uma experiência que sugou tudo de si e empobreceu todo o resto e voltar à tona para transcrevê-la com a simplicidade de palavras claras, concretas e cruas.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.