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Livros África

'Museu da Revolução' mostra que a literatura de Moçambique é vasta

Romance produz impacto pelo conhecimento minucioso de João Paulo Borges Coelho sobre as disputas que constituíram o país

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Museu da Revolução

  • Preço R$ 56,90 (356 págs.); R$ 47,90 (ebook)
  • Autoria João Paulo Borges Coelho
  • Editora Kapulana

Pouco falamos sobre literatura moçambicana. Quando esse assunto entra na roda, os comentários costumam se restringir a dois autores, Paulina Chiziane, vencedora do prêmio Camões em 2021, e Mia Couto, presença constante em festivais brasileiros.

É evidente que as obras de ambos merecem ser lidas e estudadas, mas está na hora de levar para a cabeceira outros nomes expressivos desse país do sudeste da África, colonizado por Portugal assim como o Brasil.

Homem grisalho com óculos e camisa verde
Retrato do escritor João Paulo Borges Coelho - Editora Kapulana/Divulgação

Um bom segundo passo é conhecer João Paulo Borges Coelho, com obras já lançadas por aqui, como "As Visitas do Dr. Valdez", de 2004, e "Crônica da Rua 513.2", de 2006. Seu romance mais recente publicado no país é "Museu da Revolução", que obteve o segundo lugar no Oceanos, prêmio que abarca toda a literatura de língua portuguesa.

O autor nos apresenta a personagens de diferentes gerações e países que, por razões distintas, se unem em uma viagem pelo interior de Moçambique. A van é conduzida por Bandas Matsolo, morador de Maputo e ex-combatente das lutas pela independência do país. Ao lado dele está Jei Jei, um jovem mecânico também da capital e muito interessado pela história moçambicana.

Eles levam os portugueses Artur Candal, homem idoso perseguido pelas lembranças das batalhas no país africano, das quais participou como parte das forças colonizadoras, e Leonor Basto, filha de um grande amigo de Candal. Outra passageira é a sul-africana Elize Fouche.

Não são poucos os mistérios que todos eles carregam na bagagem. Longas viagens como sagas de autoconhecimento são uma tradição da literatura e do cinema, e Borges Coelho segue essa vertente, mas não se restringe a ela.

O livro alterna o foco de um personagem para outro até percebermos que a figura central é, de fato, Moçambique. Os mais velhos, especialmente Candal, vivem reféns de um país que conheceram e não existe mais. As andanças por regiões como Tete exibem apenas sinais das paisagens urbanas e rurais daquela Moçambique sob erupção das décadas de 1960 e 1970.

Por outro lado, as experiências afetivas sobrevivem pulsantes, quase intactas, na memória desses ex-soldados.

Os mais jovens, porém, estão em busca de um território sobre o qual sabem pouco. Não se frustram tanto quanto os mais velhos porque alimentam menos ilusões e ainda não caíram na armadilha da nostalgia.

Professor de história da Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, o autor engendra um caminho em que o passado resiste colado ao presente. "Museu da Revolução" não teria tamanho impacto sem o conhecimento minucioso dele a respeito das disputas que constituíram o país.

A ficção, porém, não se sustentaria apenas com o arcabouço histórico, por melhor que seja.

Como criador, Borges Coelho parece se inspirar nas esculturas da arte maconde de estilo ujamaa, comuns no nordeste do país. São figuras humanas de feições enigmáticas que se prendem às outras; a madeira, o chamado pau-preto, é retorcida em movimentos inusitados; um equilíbrio aparentemente frágil entre os elementos.

Os destinos dos personagens se tocam onde jamais se espera. São arranjos tão imprevisíveis quanto as pontes construídas pelo autor entre a atualidade e meio século atrás. Tantos cruzamentos poderiam desorientar os leitores, mas a prosa límpida, sem alegorias, mantém o prumo das histórias.

"As pedras não falam, o passado não diz nada. Limita-se a fazer eco de todas as indagações e a devolver-nos, olhos nos olhos, as nossas perguntas", diz uma epígrafe que abre o capítulo final do livro.

Curiosa essa reflexão em uma obra no qual o passado tem tanto a dizer. Por outro lado, é preciso reconhecer que as épocas vividas nunca elucidam por completo o tempo presente de uma pessoa ou de um país.

"Museu da Revolução" talvez seja um admirável romance sobre uma contradição — o passar do tempo contribui para a compreensão da realidade de Moçambique e, ao mesmo tempo, nos impede de ver o país em sua complexidade.

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