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Filmes mostra de cinema

Retrospectiva de Paula Gaitán mostra lirismo entre imagens e sons

Programação, com curadoria de Ava Rocha, filha da diretora com Glauber Rocha, evidencia lado proustiano de seus filmes

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Rio de Janeiro

Quando um filme é exibido em um festival, estreia em sala ou ganha um prêmio, estabelece primeiramente um diálogo com os demais lançamentos da mesma época, seus concorrentes na premiação, os dados da política, da economia e do cinema daquele momento. Já em uma retrospectiva, os filmes se libertam de seu contexto mais imediato e outra rede de relações surge —a da trajetória de seu realizador ou realizadora.

Paula Gaitán em Uaká , aldeia camayurá, em 1987 - Divulgação

É assim na retrospectiva que Paula Gaitán ganha no Cinesesc, em São Paulo, entre os dias 8 e 14 de junho. A mostra exibe dez longas-metragens, 15 curtas e dois videoclipes, além de incluir debates e masterclass com a cineasta.

Nascida em Paris em 1954, de pai colombiano e mãe brasileira de origem eslava, Paula Gaitán estudou artes visuais e filosofia em Bogotá, na Colômbia, e depois viveu no Brasil, em Portugal, no Brasil de novo, na Colômbia de novo, nos Estados Unidos, na Alemanha... Poeta, fotógrafa, artista visual e cineasta, é autora de filmes muito singulares.

Dela, eu conhecia poucos títulos. Ao revê-los e pensar sobre eles agora, à luz de seu mais recente longa, "O Canto das Amapolas", do ano passado, evidenciam-se as marcas de seu estilo, seu olhar e sua relação proustiana com a memória. Nele, ouvimos a voz de sua mãe, a escritora e dramaturga Dina Moscovici, que conta, em off, histórias da família. Na imagem, uma mulher, filmada de costas, olha para uma janela aberta.

Como acomodar as lembranças dos antepassados e da própria infância ao processo de envelhecimento, que envolve tanto quem recorda quanto ouve a recordação? Essa questão, subjacente ao filme todo, surge com a materialidade dos retratos em preto e branco que dão corpo às narrativas e na voz, algo ansiosa, da cineasta.

Ela interrompe a mãe, na tentativa de fazer-lhe responder, sem desvios, o que foi perguntado. Também em off, a cineasta especula sobre suas semelhanças com a avó judia, que viveu em uma porção de países, sabia muitas línguas e frequentava a igreja católica.

Depois de iniciar-se no cinema em 1978, como diretora de arte de "A Idade da Terra", Paula Gaitán filma entre 1986 e 1987, em 16mm, "Uaka", seu primeiro longa-metragem. É um poema de imagens sobre o ritual do Kuarup, homenagem aos mortos ilustres.

Tive a oportunidade de conversar com Gaitán sobre seu longa de estreia em um debate online em 2021, justamente em agosto, o mês do Kuarup. Na ocasião, ela comparou o processo de luto, sempre inconcluso, aos movimentos do plano sequência.

Participava da conversa a curadora colombiana María Paula Lorgia, que havia realizado a primeira retrospectiva de Paula Gaitán, na Cinemateca de Bogotá. Gaitán contou-nos de suas primeiras experiências com Super 8, na época em que ela, Glauber e os filhos viviam em Portugal, em 1981, e da primeira visita à aldeia dos camaiurás, no Xingu, quando sentiu que testemunhava algo importante. "Uaka não é o filme de uma cinéfila", disse. "Eu era intuitiva, imaginativa."

Já estão em "Uaka" elementos importantes de suas realizações posteriores, como o tratamento inteligente da relação entre som e imagem, que se interpelam mas mantêm-se independentes; a convivência entre diferentes idiomas, apenas parcialmente traduzidos; o olhar insistente para o céu e o formato intrigante das nuvens, motivo recorrente na história da pintura.

Será que seu jeito de filmar foi formado pelo aprendizado com os camaiurás, que observam as diferentes tonalidades do céu para analisar o presente? Essa explicação soa redutora diante de sua obra, tão pouco afeita a causalidades diretas. "As coisas vão acontecendo, não com uma lógica cartesiana", disse. "Associações livres nos conduzem a espaços misteriosos."

É preciso ainda falar das texturas da imagem e da presença da fotografia, fundamental em seu cinema. "Diário de Sintra" começa com a visão, tão forte, dos retratos de Glauber Rocha, pendurados nos galhos de uma árvore desfolhada.

O grão da imagem e na imagem, o barulho do papel fotográfico quando encontra a mão humana, a pintura descascada da parede. "Tempo perdido, tempo redescoberto", fala, em off, Gaitán, que passa do português ao espanhol, enquanto Glauber vai do inglês ao francês.

No lençol translúcido que seca no varal de "Diário de Sintra" vejo a cortina na janela de "O Canto das Amapolas". É o mesmo corpo de mulher que olha para longe aqui e ali, como que para reiterar a frase do diretor de "Terra em Transe" ouvida no filme de 2007: "Sou partidário de Orfeu e não de Narciso".

Os dois personagens da Grécia Antiga, símbolos, respectivamente, da poesia e da vaidade ensimesmada, de certo modo ressoam no título, intrigante, da retrospectiva, que tem curadoria de Ava Rocha, filha de Gaitán e Glauber: "O Umbigo e o Sonho".

O Umbigo e o Sonho

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