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Homenagem da Flip a Pagu é boa chance de erradicar estereótipos sobre a autora

Fome por transformar Patrícia Galvão em ícone feminino ignora sua obra complexa e provoca reedições simplificadoras

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Ludimila Moreira

Historiadora, é doutora em literatura pela Universidade de Brasília

Qual seria o ponto de partida para a celebração do legado de Patrícia Galvão? A homenagem pela Flip neste ano motiva que pensemos a ampla produção artística e a imagem plasmada dessa figura em nosso imaginário cultural.

foto em preto e branco antiga mostra mulher de cabelos pretos e traços firmes olhando séria e maquiada para a câmera
A jornalista e ativista feminista Patrícia Rehder Galvão, a Pagu, homenageada da Flip 2023 - Divulgação

A necessidade que temos de encontrar e construir ícones faz com que corramos o risco de homogeneizar trajetórias complexas, e a unidade de um nome e uma pessoa, Pagu, facilita o engano de que ela venha a ser uma intelectual de apenas uma natureza e de que uma obra sua que repercutiu mais, "Parque Industrial", seja representativa de toda a sua atuação, que perpassou décadas da história cultural brasileira.

Queremos uma romancista engajada para fazer um par a par urbano com o regionalismo de 1930, mas seu romance muitas vezes mostra rachaduras do modelo exigido pelo Partido Comunista, de um panfleto a ser posto em prática o mais rápido possível.

Queremos o complemento feminino às proposições do modernismo paulista, mas muitas de suas colocações eram mais de embate direto do que de complemento.

O que podemos ver como mais fixo, se é essa a pretensão, é sua trajetória de questionamento incessante, tanto do lugar da mulher na sociedade —e o que cabia a ela almejar ou fazer— quanto de sua própria atuação intelectual.

A linguagem experimental, o ânimo político e o fluxo de consciência, convertido em uma dicção bélica aliada a uma hiperconsciência poética, faz do conjunto multifacetado da produção de Pagu —que perpassa crônicas, colunas, críticas, desenhos, ilustrações, quadrinhos, ficção, traduções e dramaturgia— um projeto estético com largo espectro de filiações, de rupturas, de dilemas e investimentos libidinais.

Sua proposta vai da aliança entre a idealização da utopia marxista e de uma ética feminista interseccional até o fluxo satírico e poético, como em "A Famosa Revista", de 1945, romance escrito a quatro mãos com Geraldo Ferraz sobre as desilusões com o Partido Comunista.

Seus projetos sempre foram forjados em um domínio de atuação política, mesmo diante da ruptura com o partido. Patrícia Galvão nunca deixou de eleger a emancipação feminina e o direito à educação e à cultura como motes de trabalho.

Ainda persiste no campo cultural o risco de apagamento ou estereotipação da sua figura, por mais que estudos centrais como os de Augusto de Campos, Kenneth David Jackson e Lúcia Maria Teixeira Furlani tenham ajudado na disseminação de sua obra em âmbito nacional e internacional.

Não é raro encontrarmos ainda hoje leituras anacrônicas e misóginas do seu trabalho, como o epíteto de "musa do modernismo" ou de pivô da separação do casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade.

Em artigos sobre seu centenário, são perceptíveis sentidos pejorativos por meio de discursos que exotizam seu comportamento e beleza, além da representação estilizada e equivocada de sua atuação como suposta coadjuvante de Oswald.

Os 90 anos de "Parque Industrial" e a homenagem da Flip são, portanto, estratégicos para reencontrar os Brasis narrados por Galvão e redimensionar seu papel da artista de vanguarda —responsável pelas primeiras traduções de Blaise Cendrars, James Joyce e Antonin Artaud e pela circulação da obra de Fernando Pessoa—, de militante torturada pela repressão getulista, de poeta e intelectual dona de múltiplas dicções e heterônimos empenhados em retratar as contradições e tensões de um Brasil vasto e fraturado.

A reedição tanto do livro "Parque Industrial", de 1933, quanto da carta autobiográfica de 1940 endereçada ao segundo marido, Geraldo Ferraz, já renderam delicadas taxonomias —como as de literatura engajada e autoficção, respectivamente— e também perda de conteúdo, como prefácios, posfácios, notas e cronologias, já que os textos voltam a habitar um campo literário em que vigem outras demandas e atritos.

Seu romance proletário, por exemplo, apresenta um inventário sociológico da cidade de São Paulo e seu processo de industrialização no início da década de 1930, com flashes do desamparo e das assimetrias sociais forjadas pelo capital, pelo patriarcado e pelo racismo, compondo um clamor de empenho épico, ainda que fragmentado, materializado em personagens que ocupam espaços periféricos em jornadas de luta contra a desumanização e o silêncio, reverberado nas vozes e nos corpos de mulheres.

A escolha de Patrícia Galvão de apresentar brasileiras pobres e trabalhadoras, em ambientes fabris e urbanos, contrariou as expectativas do partido. Sua voz narrativa forja um discurso inquietante sobre a condição das personagens operárias, escapando das diretrizes partidárias que preconizavam a transformação nas relações de classe ignorando as de gênero, que incluem a dupla jornada de trabalho e a maternidade das trabalhadoras.

É importante lembrar que o interesse aumentado do meio cultural pela atuação de mulheres faz com que a circulação de trabalhos como o de Galvão tendam a crescer bastante, mas a fome por um ícone corre o risco de apagar historicidades importantes.

Reedições por editoras de maior alcance comercial decidiram pela eliminação simplificadora de posfácios, apostando na falta de curiosidade e de paciência de um suposto leitor comum.

A carta autobiográfica lançada em 2005 pela Agir sob o título "Paixão Pagu: A Autobiografia Precoce de Patrícia Galvão" perdeu diversos paratextos na reedição recente, assim como o próprio "Parque Industrial", que tinha uma caprichada edição crítica feita pela Linha a Linha há cinco anos que infelizmente teve sua circulação interditada pela Companhia das Letras, interessada em centralizar o acesso ao texto.

Sua trajetória, sob quaisquer circunstâncias, segue merecedora de nossa atenção. Zé Celso contou à revista Bravo, em janeiro deste ano, que após o sucesso de crítica e bilheteria de sua primeira peça, "Vento Forte para um Papagaio Subir", ele e sua noviça Companhia Teatro Oficina foram chamados para participar do consagrado Festival de Santos, realizado pela TV Manchete.

Ali, houve um encontro emblemático para o jovem ator com Pagu, autora e também tradutora de Eugène Ionesco, dramaturga e crítica de arte. "Senti que ela me deu um passe naquele dia. Senti que, realmente, eu estava certo naquilo que tinha que fazer."

A cada nova pesquisa, manuscrito ou releitura em que nos deparamos com a vida e obra da artista, se acendem fôlegos de ímpetos diversos —historiográficos, literários, filosóficos— e o rastilho é inegociável, persistindo o desejo de ler, conhecer e descobrir Patrícia Galvão, sempre.

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