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Joca Reiners Terron usa minotauros em denúncia lírica dos abatedouros

Romance explora a desigualdade nos campos do Mato Grosso com sofisticação e ambiguidade moral

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Ligia Gonçalves Diniz

Professora de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais

Onde Pastam os Minotauros

  • Preço R$ 69,90 (184 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autoria Joca Reiners Terron
  • Editora Todavia

No mito grego, o minotauro é um ser parte bovino, parte humano, que guarda as consequências da recusa do rei Minos em sacrificar um belo touro a Poseidon: o deus faz a rainha Pasífae perder-se de amores pelo bicho, seduzi-lo e conceber o monstro.

Minos manda então construir um enorme labirinto para isolar do mundo o minotauro, que se alimenta de jovens enviados para serem abatidos, em uma troca hiperbólica de sacrifícios.

Em "Onde Pastam os Minotauros", Joca Reiners Terron transporta o mito para o universo igualmente brutal de um abatedouro halal, que produz carne para o Oriente Médio no interior do Mato Grosso contemporâneo.

homem branco careca com barba grisalha relativamente longa veste jaqueta preta
O escritor Joca Reiners Terron, autor de 'Onde Pastam os Minotauros' - Renato Parada/Divulgação

O labirinto agora é o curral circular e o sacrifício, sob a perspectiva das espécies, é democrático: matam-se bois do lado de dentro, enquanto morre de fome, fora dali, o povo miserável. No entanto, como leremos mais adiante, os homens "perderam qualquer sentido de compreensão do sagrado".

Nessa queda, opera-se um deslocamento na relação entre o humano e o bovino: não mais posta como maldição, é da interação entre eles que pode surgir alguma redenção.

Terron constrói essa ideia por meio do Cão, um dos funcionários do abatedouro. Criança, o personagem vive uma proximidade amorosa com o rebanho do pai adotivo; adulto, ele experimenta certa conexão psíquica com os bois que conduz para a morte. É o manejador ideal: levando os animais em tranquilidade, garante a qualidade de sua carne.

O Cão se dá conta, com horror, de que seu amor pelos touros é usado para gerar lucro à empresa e deixa seu posto, passando ao tráfico de drogas, que o leva à prisão. Quando o conhecemos no romance, está de volta ao abatedouro, ao lado de sua namorada Lucy e de seu irmão de criação, o Crente, assim como de Ahmed, o degolador palestino responsável pelo abate religioso —e cruel— dos bois.

Todos eles têm motivos para querer estar longe dali, bem como para se vingar dos homens que só encaram a violência como um bom negócio. Elaboram então um plano, cujo desenrolar acompanhamos em um bem construído ritmo de thriller.

Entremeadas aos capítulos ágeis, encontramos reflexões que vão do político ao metafísico: enquanto os revoltosos se questionam sobre a real possibilidade de saírem das espirais em que estão metidos, os sócios da empresa se preparam para pôr em prática uma demissão em massa.

O esmero em trazer minúcias da realidade, talvez proposital, é por vezes excessivo: do pastor que constrange os fiéis a não deixar a igreja na pandemia ao médico cubano que não abandonou o trabalho, há botões demais sendo apertados.

Isso não compromete, porém, o conjunto do livro, no qual Terron mostra que a denúncia da desigualdade social brasileira é mais vigorosa quando explora imaginativamente a ambiguidade moral humana, a fabulação lírica e a sofisticação formal.

O autor é feliz quando mais se arrisca. É o caso da trilha aberta entre a alucinação e a fantasia, na qual deparamos com a imagem de meninos-touros povoando o centro do curral, como uma síntese da sina local de gerar os filhos que produzirão a carne interdita a eles próprios, em uma espécie de curto-circuito da dinâmica dos sacrifícios.

Quem intui esses minotauros é o Cão, que também ouve os pensamentos dos bois cativos. Estes são trazidos à narrativa por meio de uma espécie de spin-off de um poema de Drummond, "Um boi vê os homens", que Terron desenvolve, com sucesso, ao longo de 5 dos 44 capítulos.

Sua tristeza, pensam os bichos sobre nós, "não é uma tristeza como a nossa, de quem não tem voz, mas sim a tristeza de quem tem voz mas não pode exprimir nada".

ilustração em vermelho e branco que parece corte de carne sem fim
Capa do livro 'Onde Pastam os Minotauros', de Joca Reiners Terron, que sai pela Todavia - Filipa Damião Pinto/Foresti Design

Transportando a voz aos bois, libertos do cinismo tão humano, somos confrontados com uma consciência que, diante da confluência entre tristeza e crueldade, tem como única reação possível a perplexidade.

"Ninguém ouviu essa história. A história do minotauro do ponto de vista dos bois", escreve Terron na última das passagens bovinas. Continuamos sem ouvir, afinal isso tudo é ficção. Mas o mero exercício de sacrificar-se a fim de imaginar o outro —talvez até alucinar o outro— adiciona uma camada de santidade ao Cão e de decência a nós.

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