Descrição de chapéu Televisão

Como a novela 'Guerreiros do Sol' vai mostrar o cangaço por meio do olhar feminino

Folhetim para 2024 deve priorizar romance ante a violência e terá versões diferentes para o canal aberto e o Globoplay

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cena da novela 'Guerreiros do Sol', da Globo

Cena da novela 'Guerreiros do Sol', da Globo Estevam Avellar/Divulgação

São Paulo

Longe do olhar idealizado pela imagem de Robin Hood do sertão, obra do cinema novo, o cangaço carregava elementos de sobra para um melodrama. O ponto de vista das mulheres que integravam aqueles bandos nômades seria bem capaz de revelar um mundaréu de conflitos afetivos camuflados pela ferocidade estampada em raros retratos, ocultando dores familiares, seus amores e pecados. Esta é a premissa de "Guerreiros do Sol", próxima novela original da Globoplay.

Cena da novela 'Guerreiros do Sol', da Globo
Cena da novela 'Guerreiros do Sol', da Globo - Estevam Avellar/Divulgação

A autoria do enredo é de George Moura e Sergio Goldenberg, que criaram "Amores Roubados", "Onde Nascem os Fortes" e "Onde Está o Meu Coração". À Folha, a dupla detalha a produção, que soma 45 capítulos, com previsão de estreia em 2024 no serviço de streaming e em 2025 na TV aberta. As gravações ocorrem desde maio e devem ser concluídas entre setembro e novembro, com direção artística de Rogério Gomes, o Papinha, que fez o remake de "Pantanal".

A Isadora Cruz, atriz paraibana que vive Rosa, a protagonista, caberá a função de narradora, recurso que os autores prometem usar com parcimônia. Seu par é o pernambucano Thomás Aquino, chamado em cena como Josué, que ganha seu primeiro protagonista em uma novela.

Como folhetim que se preze, convém jogar holofotes sobre o vilão, missão entregue ao também pernambucano Irandhir Santos, denominado Arduíno, irmão do mocinho, Josué. Paraibana de Cajazeiras, Marcélia Cartaxo faz a mãe dos dois. De Umbuzeiro, na Paraíba, o elenco estará representado por Luiz Carlos Vasconcellos.

Aulas de prosódia não serão problema para o elenco, mas há também atores de outras origens, como o curitibano Alexandre Nero, que fará Miguel Inácio, o preceptor de Josué, o mineiro Daniel de Oliveira e a carioca Nathalia Dill, além de Alinne Moraes e José de Abreu, ambos nascidos no interior paulista. A produção conta ainda com Otávio Muller, Carla Salle, Rodrigo Lélis, Ítalo Martins, Vitor Sampaito e Alice Carvalho.

"Quando a gente decidiu falar sobre o universo do cangaço, ficamos muito impressionados com como ele ainda tem uma lógica que dialoga com as situações contemporâneas", diz Moura. "Essa lógica da ausência do Estado, das histórias de amor, honra, justiça e poder está muito presente no Brasil de hoje. A ideia é falar do Brasil de ontem para se fazer uma reflexão do hoje, com o molho do melodrama, porque pouco se falou dos afetos dos cangaceiros."

Embora o título seja homônimo do livro documental de Frederico Pernambucano de Mello, pesquisador sobre cangaço e consultor dos autores, a novela bebe no legado de Lampião e Maria Bonita, assim como de outros casais daquele contexto, sem no entanto atrelar os personagens a qualquer vínculo biográfico —ainda que algumas referências sejam evidentes, como o padre Enóqui, equivalente a padre Cícero.

O fotógrafo libanês Benjamin Abrahão, que era assistente de padre Cícero e se valeu disso para fazer a maior parte dos registros do bando de Lampião e Maria Bonita, será representado por outro imigrante, sob o nome de Almir, interpretado pelo sírio Kaysar Dadour, ex-BBB.

A dimensão alcançada pela ausência do poder público atinge níveis improváveis alimentados pela sanha de um bando que busca justiça com as próprias mãos. Uma história que os autores contam na novela é que o Estado queria coibir a coluna Prestes, liderada pelo comunista Luís Carlos Prestes, mas, sem condições, pediu ajuda aos cangaceiros.

As muitas cenas bélicas previstas para a novela dispensam as famigeradas balas de festim de outrora, em troca de uma tecnologia que permite hoje produzir algo mais verossímil, barato e seguro. A opção tem se tornado regra após a morte de Halyna Hutchins, atingida por um tiro disparado acidentalmente por Alec Baldwin no set de filmagem do filme "Rust".

Violência explícita, no entanto, não está nos planos do roteiro, avisam os autores. "Em geral, nas narrativas audiovisuais do cangaço, fala-se muito da ferocidade, né? Eles eram sanguinários, mas a gente quer falar é da genealogia das afetividades", diz Moura.

Assim, o texto não demandará mudanças significativas entre a versão original exibida pelo streaming e o recorte a ser feito para a TV aberta, em geral mais intolerante à ousadia.

"A gente sabe que no streaming pode pisar um pouco mais no acelerador e não só em cenas de sexo", diz Moura. "Tem também a densidade dramatúrgica. No próprio ‘Onde Está o Meu Coração’ [minissérie sobre dependência química] tivemos essa questão."

"Mas é um texto só. As mudanças para os dois canais, eventualmente, são feitas na hora da gravação e da montagem", intervém Goldenberg. "O combinado não sai caro", segue Moura, atestando que os dois têm noção da plateia que aguarda pela novela em cada tela. "A TV aberta é sempre uma tentativa de colocar mais gente para dentro, aderindo àquela história, né? A gente tem que ter esses cuidados."

Já que a proposta é enxergar o cangaço por meio do romance, cenas de sexo não estão dispensadas da edição. Mas seu teor deverá ficar aquém das coreografias eróticas vistas nas novelas anteriores da plataforma, "Verdades Secretas 2" e "Todas as Flores".

Habituada a ver suas histórias totalmente gravadas antes de irem ao ar, a dupla tampouco se mostra preocupada com o caráter fechado de uma obra normalmente aberta e sujeita a mudanças de acordo com os humores do público.

Contemplar o cangaço pelo olhar feminino e ficcionar as relações humanas internas dos bandos do movimento significa trazer um frescor sobre esse universo, mas também contemplar a demanda da plateia por vozes historicamente caladas.

A questão é: até que ponto as figuras femininas possuíam de fato uma força capaz de interferir no dia a dia, mas que estaria apenas invisibilizada pelo estereótipo daqueles homens com cara de mau?

"Força invisibilizada é uma excelente definição para a mulher nordestina, sobretudo para a mulher nordestina no cangaço", diz Moura. "Elas tinham uma força estupenda. À sombra, mas nem por isso menos importante ou menos presente."

Um time de roteiristas mulheres acompanha a dupla de homens nessa missão de esmiuçar o olhar das mulheres para o cangaço —Cláudia Tajes, Mariana Mesquita, Ana Flávia Marques e Dione Carlos, que contemplam cores e origens diferentes, de Porto Alegre a Recife. Marcos Barbosa completa o time.

Mas os titulares de "Guerreiros do Sol" se sentem muito bem como homens capazes de enxergar conflitos pelo olhar feminino, princípio posto em prática em todas as histórias que já escreveram, inclusive na releitura de "O Rebu", que trocou o protagonismo masculino do original pelo de Angela Mahler, interpretada por Patrícia Pillar.

"O viés da compreensão é diferente, embora eu continue a acreditar, como nos tempos de outrora e para os tempos de amanhã, que o artista pode falar sobre tudo", diz Moura. "O lugar de fala é fundamental, mas ele não pode se transfigurar num lugar de cala."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.