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América Latina

'O Conde' usa Pinochet vampiro em boa reflexão sobre ditadura do Chile

Filme de Pablo Larraín surpreende na sátira soturna ao conciliar a atualidade com os fantasmas do passado da esquerda

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O Conde

  • Quando Estreia nesta sexta (15), na Netflix
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Jaime Vadell, Alfredo Castro e Catalina Guerra
  • Produção Chile, 2023
  • Direção Pablo Larraín

Augusto Pinochet, um filme de terror? Não é má ideia. O general Pinochet instituiu, afinal, o terror que inundou o Chile de sangue por mais de 15 anos.

Imaginá-lo como um conde em "O Conde", isto é, o conde Drácula, tem uma parte de humor e outra de alegoria. Fiquemos com a segunda, pois existe aí uma questão de oportunidade evidente: um vampiro tem como característica central o fato de não morrer inteiramente, embora esteja morto. Isso parece acontecer com as ditaduras.

O Conde
Alfredo Castro em cena do filme 'O Conde', de Pablo Larraín - Pablo Larraín/Divulgação

Pinochet está morto desde 2006, mas a extrema-direita que representa, não. Está bem viva, e não apenas no Chile. Com isso, o filme se mostra atento a movimentos presentes hoje, também, na Argentina —onde está bem desperto— e no Brasil —agora em hibernação.

A postura de Pablo Larraín, autor de "O Conde", é bem conhecida ao menos desde o seu eufórico "No", de 2012, onde representava a campanha publicitária para levar a maioria dos chilenos a dizer não ao governo do ditador. É claramente contra o autoritarismo. No entanto, estamos em um filme soturno.

O que teria mudado em pouco mais de dez anos? As imagens dizem tudo. Estamos, para começar, no reino do branco e preto —branco e preto à maneira contemporânea, isto é, que substitui a antiga oposição de claro e escuro, de luz e sombra, por gradações não muito acentuadas de cinza—, onde todos os vampiros são pardos, quer dizer, cinzentos.

E onde a capa tradicional de Pinochet serve não só como ostentação de poder, mas para ele sair voando em busca de mais sangue dos chilenos.

Antes de ser o ditador que conhecemos, o vampiro Pinochet veio ao mundo como o cruel soldado Pinoche, das tropas do rei Luís 16. Por sinal, ele trairá a monarquia quando vem a Revolução Francesa: junta-se aos republicanos para melhor apreciar todos os dias o espetáculo da decapitação dos nobres.

Macabro para nós, mas alegre para ele. De galho em galho ele chegará ao Chile para o destino que conhecemos.

No filme, o hoje vampiro habita uma ilha deserta, razoavelmente sinistra, em que sua casa é cercada de túmulos. Tem como companhia a mulher, Lucia, e Fyodor, o sintomático mordomo, que fugiu da Rússia quando os bolcheviques chegaram ao poder.

Fyodor foi para o Chile e, durante a ditadura, dirigia Villa Grimaldi. Antes que alguém tenha a ideia de batizar um edifício cafona com esse nome lustroso, convém lembrar que isso era um campo de tortura e extermínio de oponentes do regime Pinochet.

Quem se opõe ao vampiro ditador é a Igreja Católica, que providencia uma freira exorcista para expulsar o demônio do corpo de Pinochet.

Chama-se Carmen a freira que se instala na assustadora residência. Sua presença será, marcada pela ambiguidade, como se Larraín se perguntasse onde encaixar os cristãos nessa história. A Carmen, aliás, deve-se a provocante cena de balé aéreo, em que sua veste branca contrasta com o cinza do exterior noite. Um dos melhores momentos do filme.

O tom geralmente irônico desse exercício de horror tem um quê passadista, quase uma obsessão pela figura do ex-ditador, e não raro ameaça se afundar no passado. Sai disso, em parte, quando entram em cena os filhos de Pinochet em busca de sua parte na fortuna que o pai acumulou nos anos de poder.

Para chegarem até lá, eles vivem outra bela cena: a travessia num barco conduzido por Fyodor de um enorme lago. Ou braço de mar. O objetivo aqui é, claramente, deixar evidentes os pecados derivados da ganância, mas ao mesmo tempo instaurar um certo drama shakespeareano, de brigas familiares e etc.

Temos até aí um exercício de filme político cujo interesse deriva de circunstâncias políticas contemporâneas —não só latino-americanas—, mas cujo desenvolvimento não exclui certa platitude.

Larraín consegue efetivamente despertar o espectador um tanto enfastiado com a paródia alegórica que desenvolve quando decide expandir os limites do vampirismo e buscar a ascendência de Pinoche e Pinochet. Conversa vai, conversa vem, entra em cena uma vampiresca Margaret Thatcher, a nos lembrar das ajudas do ditador em favor da Inglaterra e contra a Argentina, durante a Guerra das Malvinas.

É um ponto em que a construção do filme produz uma reviravolta fascinante. A partir daqui, cuidado com os spoilers.

Em alguns segundos somos transportados do passado ao presente. Já não estamos às voltas com as velhas ditaduras do século passado, nem com vampiros sedentos de sangue, mas com as forças políticas que hoje se insinuam com vigor —e de que o Brasil, diga-se, deu uma demonstração mais que contundente há muito pouco tempo. É a conjunção entre o liberalismo político e a ditadura militar.

Ao introduzir a vibração da atualidade, Larraín parece por fim conciliar os fantasmas que atormentaram a esquerda e assim a questionaram em um passado razoavelmente recente, para chegar a um filme enfim plenamente político.

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