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Fabio Giambiagi

Primárias na Argentina foram terremoto político de dimensão inédita

Atual oposição pode ter maioria no Congresso na eleição de outubro, levando peronismo a maior derrota em 40 anos

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[RESUMO] Vitória da direita nas primárias da Argentina, simbolizada pelo resultado do ultraliberal Javier Milei, indica que a atual oposição pode conquistar maioria no Congresso nas eleições de outubro, levando o peronismo, força política central do país, a sua pior votação em 40 anos, desde o fim da ditadura militar.

Nos próximos meses, o leitor lerá muitas notícias sobre a Argentina. O país hermano consagrou um sistema eleitoral que estabelece a existência de um sistema de (até) três turnos. No começo, tivemos as primárias abertas simultâneas e obrigatórias (Paso), com o voto de todos os eleitores, como forma de "organizar a fila" e decidir quem lidera cada grupamento político.

Depois das Paso, haverá o primeiro turno em 22 de outubro e, dependendo dos resultados, o segundo turno em novembro.

O deputado ultraliberal Javier Milei comemora resultados nas eleições primárias no último domingo (13), na Argentina - Alejandro Pagni/AFP

Portanto, na mídia haverá Argentina por um bom tempo. Este texto visa aproximar o leitor de uma série de elementos que serão importantes levar em conta para o entendimento pleno dos fatos que ocorrerão no país vizinho nos próximos meses. Trataremos aqui da força história do peronismo, da possibilidade de uma mudança política de dimensões inéditas, dos desafios da governabilidade e dos resultados das Paso.

O "fato maldito" da política argentina

John William Cooke, um advogado peronista de décadas atrás, qualificou o peronismo como o "fato maldito da política argentina". Ele dividiu o país em dois grupos praticamente irreconciliáveis desde quando surgiu esse movimento, em 1943. Nestes 80 anos, o peronismo marcou a ferro e fogo a política argentina, mesmo estando em diversas ocasiões fora do poder.

Isso motivou a frase, válida até agora, de que "fora do peronismo, a Argentina não tem solução; com o peronismo, também não".

O peronismo esteve proscrito de 1955 a 1961, na época dos governos da "Revolução Libertadora", o que tornou fraquíssimos os governos civis da primeira metade da década de 1960.

De 1966 a 1973, houve novo governo militar e, em 1973, o peronismo voltou ao poder por três anos. Quando seu líder, Juan Domingo Perón, morreu em 1974, foi substituído pela mulher, Isabel, que foi deposta por um golpe militar em 1976.

Após o fim da ditadura militar, em 1983, todos os presidentes não peronistas desde então —Alfonsín, De la Rúa e Macri— conviveram com o problema de serem minoria no Congresso, o que fez deles governantes fracos, independentemente das falhas que cometeram.

A Argentina, portanto, com o peronismo sendo parte do jogo —isto é, deixando de lado o período em que ficou proscrito—, conviveu, em geral, com uma de duas situações:

  1. Governos peronistas fracassados, pela inconsistência entre o DNA de suas inclinações populistas e os "estreitos limites do possível" impostos pela realidade macroeconômica;
  2. Governos não peronistas igualmente fracassados, seja pelo peso da herança recebida ou pela fraqueza ao ter que lidar com uma oposição peronista majoritária no Congresso e muito agressiva nas ruas (mesmo reconhecendo que eles também possam ter tido sua cota de incompetência).

Houve duas claras exceções: os governos de Menem e os primeiros governos da dupla Kirchner. Em ambos os casos, em circunstâncias muito específicas, favorecidos pela abundância de capitais no ciclo da globalização dos anos 1990 e pelo boom das commodities da década de 2000.

Quando a festa acabou, ambos os esquemas entraram em crise: no primeiro caso, com a "bomba" tendo acabado no colo de Fernando de la Rúa; no outro, derivando no esquema de controles "norte-coreanos" do segundo governo de Cristina Kirchner, com inflação "desenhada" pelo Indec (o IBGE argentino) e "cepo cambiario", controle cambial.

Resumindo: na Argentina, em condições normais e com pouco crédito externo, não há solução fora do peronismo (porque não é possível governar) e, com o peronismo, também não (pois suas políticas conduzem ao colapso).

Esta vez (poderia ser) diferente

Mauricio Macri perdeu as eleições em 2019 porque o PIB caiu em 3 de seus 4 anos de governo e deixou o país com 55 % de inflação. Alberto Fernández nem teve condições de ser candidato à reeleição porque o PIB caiu em 4 de seus 4 anos de governo e a inflação, em 12 meses, está perto de 120%.

O que o candidato oficial promete? "Vou acabar com a inflação." Como Sergio Massa é dublê de candidato e atual ministro de Economia, jornalistas já pontuaram: "Então, por que não começa agora?". Pergunta que, com a inflação mensal oscilando entre 7% e 8%, naturalmente é difícil de responder.

A Argentina, desde 1983, foi governada pelo peronismo em 28 dos 40 anos de democracia. Em particular, foi governada por ele em 18 dos últimos 22 anos.

O país tem agora uma crise de autoestima como nunca antes vista, com um êxodo impressionante para o exterior de filhos da classe média, queda do PIB em 7 dos últimos 12 anos e uma inflação mensal anualizada a caminho de mais de 150%. Convenhamos que, em condições normais, é natural que um governo assim tenderia a ser derrotado nas eleições.

O que distingue essa possível situação de outras derrotas peronistas é que, desta vez, pode ser que existam placas tectônicas se movendo. Não se trata apenas de o governo Alberto Fernández ser derrotado; pela primeira vez desde a redemocratização de 1983, a oposição, caso vença, pode ter condições bastante favoráveis de governabilidade, associadas a seu espaço de apoio no Congresso.

Na Argentina, as eleições para deputados renovam metade da Câmara a cada dois anos. Macri venceu em 2015, mas metade da Câmara era antiga, eleita em 2013, ainda com plenos poderes do governo Cristina.

Em 2019, o peronismo fez uma excelente eleição, mas seus deputados devem ter agora uma votação muito menor. Por isso, parece bastante provável que a atual oposição consiga maioria na Câmara e no Senado.

É possível, portanto, vaticinar que, em caso de vitória da oposição, as condições para governar, do ponto de vista político, nunca terão sido tão favoráveis. Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff publicaram há anos "This Time Is Different", analisando se alguns fenômenos associados à loucura financeira poderiam não ter o final desastroso de outros ciclos. Parodiando o livro deles, pode ser que desta vez seja diferente na Argentina. A ver.

Na contramão de Kuznets

Sou brasileiro, mas filho de argentinos. Morei na Argentina até 1976, quando minha família teve que escapar do país. Cresci, portanto, como aspirante a cidadão na Argentina dos anos 1960 e 70.

Naquele período, um namoro entre filhos de uma família peronista e uma antiperonista era tão complicado como um relacionamento interracial nos tempos do apartheid na África do Sul. Com esse histórico como pano de fundo, não é de estranhar que uma das palavras mais citadas no léxico argentino nos últimos anos seja o fenômeno de "la grieta", a fenda social que, em tempos de polarização extrema, divide a sociedade em grupos inconciliáveis, fraturando relações de trabalho, amizades e até famílias.

A isso se soma o reconhecimento mais ou menos unânime de que o país fracassou, até agora, como nação. Na Argentina, ninguém tem muito a celebrar, pois todos fracassaram: militares e civis, peronistas e antiperonistas, kirchneristas, os radicais de Alfonsín e De la Rúa e os macristas.

Mesmo antes de alguns desses fracassos, Simon Kuznets, um famoso economista com certo senso de humor, nos tempos em que estava na moda falar do "milagre japonês", dizia que havia "quatro tipos de países: desenvolvidos, subdesenvolvidos, Japão e Argentina". Os dois últimos seriam fenômenos que a ciência econômica não conseguiria explicar sem a ajuda da psicologia social.

Parece difícil imaginar como a Argentina poderia sair do atoleiro em que se encontra sem um entendimento mínimo de algumas forças políticas que liderem o país na direção de uma mudança.

O terremoto

Eu tinha deixado semiprontas as páginas acima antes do último domingo (13) para completar o artigo após o resultado das Paso. O sentido era dizer ao leitor: "Na falha de San Andreas, há placas se movendo". Até que, no domingo, veio o terremoto de grau nove na escala Richter.

Javier Milei, vencendo as eleições primárias em 16 das 24 províncias, se converteu no principal ator político do país nos próximos meses. Além de ter sido o vencedor individual das eleições, sua votação até mesmo ultrapassou a soma dos dois candidatos do partido de Macri (Proposta Republicana, o PRO). Com isso, muitos já o consideram o favorito para vencer as eleições presidenciais de outubro.

No Congresso de 257 deputados e 72 senadores (no qual o vice-presidente tem o voto de minerva), é preciso ter 129 deputados e 36 senadores para conquistar maioria. Se os resultados de domingo se repetirem daqui a dois meses, as projeções indicam que, na Câmara, Juntos por el Cambio (a coalizão macrista) teriam 107 parlamentares; o peronismo, 94; o partido de Milei (os "libertários"), 40; e o restante, 16.

No Senado, seriam 27 cadeiras do PRO/Radicalismo, 33 de peronistas, 8 de libertários e mais 4 de independentes.

A simples lógica matemática indica que a soma de macristas e libertários (no Senado, com a ajuda de um único independente) daria a um governo da atual oposição a maioria para governar, sem qualquer necessidade de pacto com o peronismo, pela primeira vez desde 1983.

Se Patricia Bullrich. ex-ministra de Macri, for eleita presidente, ela teria que tentar o apoio dos libertários para governar, restando saber o que o partido do Milei exigiria em troca.

Já se Milei vencer, ele poderia governar com Juntos por el Cambio com certa folga. De qualquer maneira, para isso teria que fazer política com p maiúsculo, sem ter nenhum governador próprio, algo que não está nada claro que possa executar, considerando que sua campanha foi toda baseada na ideia de que a classe política como um todo está corrompida até o último fio de cabelo.

Abre-se um período de enormes dúvidas para a Argentina, em que a palavra-chave será governabilidade. Quem souber o que acontecerá deve estar muito mal-informado.

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