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Henrique Artuni

Wes Anderson não teme filmar o 'cancelado' Roald Dahl palavra por palavra

'A Maravilhosa História de Henry Sugar', na Netflix, reafirma diretor como um apaixonado pelas letras e pela ficção

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Wes Anderson tem uma sensibilidade incomum. Basta ver qualquer um dos seus filmes. "A Maravilhosa História de Henry Sugar" abre com uma de suas provocações —Roald Dahl, autor lembrado nos últimos meses mais por seu antissemitismo e por uma suposta linguagem ofensiva do que por sua obra extensa, é vivido por um nazista. Quer dizer, por Ralph Fiennes, ator que, entre tantos papéis, eternizou o oficial da SS Amon Göth em "A Lista de Schindler".

É o mesmo cavalheiro diabólico que foi Voldemort em "Harry Potter" e também Monsieur Gustave H., um dos personagens mais delicados da prole de Anderson, em "O Grande Hotel Budapeste". Agora, encarnando o próprio Dahl, ele contará a bizarra fábula de um ricaço que aprende a ver sem usar os olhos.

Cena de 'The Wonderful Story of Henry Sugar', média-metragem de Wes Anderson
Cena de 'A Maravilhosa História de Henry Sugar', de Wes Anderson - Divulgação

Ora, nesse mundo Dahl é bandido ou mocinho? A depender do cineasta, será para sempre um narrador, como é neste "Henry Sugar", primeiro de quatro curtas feitos pelo diretor, todos baseados em contos do autor britânico, lançados diariamente na Netflix desta quarta (27) até sábado (30).

Como em "Asteroid City", longa de Anderson que chegou em agosto aos cinemas, "Henry Sugar" sobrepõe anedotas, narrações, escritos e traça um paralelo empático entre criatura e criador. Em especial, Anderson, que já levou "O Fantástico Sr. Raposo" de Dahl aos cinemas em animação, encontra nesse conto uma forma de defender seu cinema que se fia na palavra.

É uma aproximação que perpassa toda sua obra, mas que ficou mais óbvia com o interesse pela literatura de Stefan Zweig em "O Grande Hotel Budapeste" e o jornalismo literário de "A Crônica Francesa", inspirado na The New Yorker.

Para um cineasta acusado de se repetir, curioso como "Asteroid City", um tratado sobre a arte americana do pós-guerra filmado como um desenho do Papa-Léguas, é oposto à elegância britânica desse curta.

Mas se você ainda não se recuperou dos diálogos velozes e atropelados do longa anterior, talvez queira esperar um final de semana tranquilo para enfrentar "Henry Sugar", espécie de áudiolivro em velocidade três para se ver com o controle remoto na mão —o streaming tem lá suas vantagens.

Afinal, enquanto o mundo lá fora quer reescrever Dahl, cedendo à pena do politicamente correto, Anderson, em seu mundinho fabricado, não tem medo de filmá-lo palavra por palavra. Ao pé da letra. Isso inclui personagens falando "eu disse" ou "pensei" após dizer uma frase, ou virar para a câmera de forma cômica para mostra uma emoção que acabou de ser descrita.

Se no meio do processo de produção os herdeiros do autor quisessem aprovar a decupagem, bastaria ter o livro em mãos. Mas Anderson não provoca em busca de holofotes. Se assim fosse, só readaptaria sucessos como "Matilda" ou "A Fantástica Fábrica de Chocolate", que sofreram alterações em palavras como "feio" e "gordo".

"Henry Sugar" não teria graça nas mãos de um diretor pedestre. Não é à toa que vemos, em mais de uma ocasião, os próprios personagens reafirmando que aquilo é um relato real, fidedigno, "palavra por palavra".

É nessas ocasiões que o espectador adulto é catapultado para o passado —para o piso frio da biblioteca da escola, para o colo de um parente, para debaixo das cobertas— e reencontra o prazer da literatura infantil, onde as palavras da história, a voz de quem conta e o pensamento de quem lê são a mesma coisa.

No curta, isso se reflete na economia cênica e da produção. O personagem título é Benedict Cumberbatch, mas ele só será importante lá pelo meio. Antes, a montagem hábil de Anderson passa o bastão da leitura de Fiennes para ele com delicadeza ao mostrar "técnicos" mudando o fundo e a iluminação, deixando entrever a ilusão dos filmes de estúdio, antes de nos lançar novamente para a ilusão.

Depois, Cumberbatch acha o diário de um médico indiano, cujo relato será encarnado por Dev Patel. No meio, entra Imad Khan, vivido por Ben Kingsley, um mágico capaz de ver tudo a seu redor mesmo "vendado com 50 ataduras". Mais do que um objeto de estudo do médico, Khan será —deixe-me contar— o quarto narrador em dez minutos de filme, com um resumo da sua vida.

Esse gosto pelas veredas que se bifurcam se complica quando cada ator vive ao menos dois personagens. Kingsley vai de ancião a crupiê, Patel de médico a contador, enquanto Anderson reconhece em Cumberbatch um talento à la Peter Sellers de brincar por muitos papéis radicalmente diferentes.

Como boa literatura infantil que é, Dahl nos encanta primeiro com uma história detalhista e quase inocente, como uma versão light de "O Homem dos Olhos de Raio-X", obra-prima de Roger Corman sobre o mundo além do visível. Quando o leitor já está na mão, Anderson nos ilude como só o cinema pode fazer. Para citar o conto, as pessoas "esquecem que há outras formas de enviar imagens para o cérebro".

Nos últimos minutos, um trecho de "Così Fan Tutte", de Mozart, cantado a três vozes, se mistura ao fundo sonoro do filme. Na tela, o vazio nos olhos de Cumberbatch dispensam as palavras e qualquer firula visual. Antes dos créditos, a sinfonia se completa —as vozes de Fiennes, Dahl e Anderson são a mesma.

A Maravilhosa História de Henry Sugar

  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação Livre
  • Elenco Benedict Cumberbatch, Ben Kingsley, Ralph Fiennes
  • Produção EUA, Reino Unido, 2023
  • Direção Wes Anderson
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