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Patriarcado foi o grande vilão de Cannes, com filmes femininos fortes

Corrida pela Palma de Ouro teve apenas quatro mulheres entre 22 diretores, mas homens também olharam para elas

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Cannes (França)

É irônico que numa seleção com apenas quatro diretoras mulheres, o Festival de Cannes deste ano tenha sido tão feminino. Dos 22 longas em competição, pelo menos metade levou às telas discussões intrinsecamente femininas, passeando por temas como aborto, feminicídio, violência doméstica, maternidade, objetificação do corpo e etarismo.

Cena do filme 'The Substance', de Coralie Fargeat
Cena do filme 'The Substance', de Coralie Fargeat - Christine Tamalet/Divulgação

A sensação é a de expurgo e de mea culpa. Parece que os homens começaram a assimilar, também, os males do patriarcado, num ataque cultural que uniu gêneros e foi responsável pelos melhores filmes exibidos nesta 77ª edição do evento.

Entre os longas com direção feminina, "Bird", da britânica Andrea Arnold, e "All We Imagine as Light", da indiana Payal Kapadia, mostram processos de amadurecimento de mulheres que não se encaixam nas normas impostas por suas respectivas sociedades.

"The Substance", da francesa Coralie Fargeat, traz Demi Moore num papel com muitos tons pessoais, ao acompanhar uma atriz que cai no ostracismo por causa da idade e, por pressão externa, fica obcecada pela própria aparência. Só lhe dão atenção quando a veem como um pedaço de carne, numa crítica à objetificação que se repete em "Wild Diamond", da conterrânea Agathe Riedinger.

Na ala de diretores, "Anora", do americano Sean Baker, vai numa linha parecida, ao mostrar uma garota de programa vista como um produto e sendo culpabilizada pelos erros de homens –ela é ardilosa e manipuladora, enquanto o rapaz com quem se envolve, coitadinho, seria apenas um menino.

"Emilia Perez", do francês Jacques Audiard, refletiu sobre o feminino como solução para um mundo embrutecido por anos de patriarcado, a partir de uma personagem que passa por uma transição de gênero. A lente também foi ampliada pelo iraniano Mohammad Rasoulof, que pôs a estrutura de poder erguida por homens como responsável por atos cruéis e autoritários de uma sociedade que mina a liberdade das mulheres.

Leia sobre os filmes em competição em Cannes

O brasileiro Karim Aïnouz, como já é praxe em seu cinema, deu escuta a elas em "Motel Destino", que toca no tema da violência doméstica, assim como "Beating Hearts", do francês Gilles Lellouche. E muitos outros pincelaram, de forma menos óbvia, seus filmes com tons feministas, seja dentro ou fora da competição de longas metragens.

Esta seleção do Festival de Cannes, quando anunciada, havia sido elogiada por muitos críticos e cinéfilos pela força, com nomes como Francis Ford Coppola e David Cronenberg na dianteira. Chegando à Riviera Francesa, porém, a história foi outra. O evento chega ao fim com a sensação de que a grande parte dos títulos foi mediana, incluindo os desses medalhões.

É especialmente digno de nota, portanto, que dois filmes entre a não mais que meia dúzia dos que chamaram a atenção, "Bird" e "The Substance", sejam obras de diretoras mulheres. Sorte de Greta Gerwig, presidente do júri deste ano, que recentemente vestiu a boneca Barbie de feminismo e que pode levar seu discurso de empoderamento à lista de premiados sem forçar a barra.

Além de Gerwig, o 77° Festival de Cannes também ampliou as vozes de mulheres ao premiar Meryl Streep com a Palma de Ouro honorária. Num painel do qual participou, ela voltou à luta que sempre encampou pela presença de atrizes mais velhas em papéis de destaque no cinema. "Quando eu te vejo na tela, eu não vejo você, eu vejo um movimento", disse Juliette Binoche na cerimônia de abertura, ao receber Streep no palco.

A escolha por exibir o curta "Moi Aussi", de Judith Godrèche, que traduz para o francês o movimento MeToo, também mostra que o Festival de Cannes está de olho nos ventos da mudança e preocupado com a própria imagem. O filme é praticamente um ato político, e abrir a mostra paralela Um Certo Olhar com ele passa uma mensagem forte.

Pode ser reflexo também da presença de Iris Knobloch, que assumiu a presidência do evento há dois anos e que, em entrevista à revista americana Variety, disse neste mês que "estamos vivendo um momento de transformação" e que o MeToo "é importante para que vejamos as mulheres de forma diferente".

Um discurso forte, ironicamente um ano depois de o Festival de Cannes ter escolhido, como filme de abertura, o complicado "Jeanne du Barry", um drama de época da diretora Maïwenn e com pretensões feministas, mas estrelado por Johnny Depp, acusado de violência doméstica por Amber Heard.

O divórcio hipermidiático entre eles é, também, fruto do movimento de empoderamento, já que começou com um artigo da atriz em que tornou pública a informação de que teria sido abusada física e sexualmente. Ela perdeu nos tribunais, porém, numa decisão contestada por muitos e rotulada pela colunista Michelle Goldberg, do The New York Times, como "a morte do MeToo".

Assim, o Festival de Cannes tenta contornar a ainda baixa presença de mulheres entre seus cineastas, no que seria um mero reflexo da produção cinematográfica contemporânea, como costuma dizer o diretor do evento, Thierry Frèmaux, sempre que é questionado por um aspecto ou outro da seleção de filmes da vez.

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