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Cinema

Godard orquestrou uma constelação de musas apesar de seu machismo

Do amor por Anna Karina à criação de um padrão masculino para a nouvelle vague, diretor mergulhou na guerra dos sexos

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São Paulo

O diretor franco-suíço Jean-Luc Godard, morto nesta terça-feira, aos 91 anos, teve uma compreensão totalizante do poder feminino. Em "Viver a Vida", de 1962, a atriz dinamarquesa Anna Karina, com quem tinha se casado no ano anterior, representou a um só tempo a penúria do cotidiano das jovens solitárias e a idealização da mulher, envolta na aura lírica da nouvelle vague.

Dividido em 12 capítulos, o filme conta a tragédia de Nana, uma jovem do interior, que abandona marido e filhos para tentar ser atriz em Paris. Sem dinheiro, ela decide se prostituir. Ao rés do chão, Godard examinava o realismo, que seria tão recorrente na vertente política de sua obra.

Anna Karina e Jean-Luc Godard no set do filme 'Alphaville', em 1965 - Collection ChristopheL via AFP

O título "Viver a Vida" sintetiza o único destino daquela mulher —ser prisioneira do desejo de atuar. O sofrimento de Nana contrasta com a resignação diante da vida. A cada cliente, ela provava ter consciência de seu fardo. Nesse encontro de perspectivas, aparece toda a exuberância de Karina, cujo destino seria ter a primazia entre as musas do diretor francês.

Godard desejava uma participação de Karina em "Acossado", de 1960, mas a atriz rejeitou o convite, sabendo que deveria aparecer nua. O diretor não compreendera a decisão da jovem, por quem se tornou obcecado. Para a personagem principal, foi escalada a atriz americana Jean Seberg. Seus cabelos curtos se tornaram tendência, um charme para o padrão de beleza da época. De inspiração banal, a obra já apresentava toda a complexidade dos longas de Godard.

Centrada em Michel Poiccard, ladrão de carros vivido por Jean-Paul Belmondo, o roteiro se alicerça na figura do anti-herói, contida na própria ideia de banditismo. Assim, as cenas em que Michel e Patricia saem desembestados pela estrada, se tornaram símbolo de uma aventura amorosa, sonhada por qualquer espectador.

Em sua vida privada, o diretor namorava Karina desde 1959, quando a atriz tinha apenas 18 anos. A história do casal seria conturbada até o divórcio, em 1967. Se Godard elevou a atriz a um lugar de destaque na nouvelle vague, ele também provocou sofrimento em sua vida.

Segundo Karina relatou em entrevistas, Godard era capaz de avisar que sairia para fumar e desaparecer por três semanas. Aos olhos de 2022, mesmo a idealização feminina, sugerida pelo modo como o diretor filmava as mulheres, pode ser interpretada como machismo, comportamento comum à época. A conclusão, porém, seria tomada por um raciocínio anacrônico e reducionista, incapaz de abordar os múltiplos significados da obra do cineasta.

Em 1961, "Uma Mulher É Uma Mulher" já havia tematizado a potência feminina, tendo Karina como protagonista. A dançarina Angéla queria a todo custo um filho de Émile, vivido por Jean-Claude Brialy. Émile dizia não estar pronto, e Angéla passou, então, a ser desejada por Alfred, personagem de Jean-Paul Belmondo. Godard explicitava ali a guerra dos sexos, mostrando o poder que a mulher tinha em gerar a vida.

A mulher também esteve no centro em "O Desprezo", de 1963, talvez a obra-prima de Godard. Dessa vez, a musa era Brigitte Bardot, que encarnava a esplêndida Camille. Ao mesmo tempo que correspondia ao desejo fetichista do público, a nudez de Bardot assustava o moralismo —tudo o que BB, como era conhecida, sempre odiou—, colaborando também para a emancipação do corpo feminino.

Nesse filme, Godard revelou todas as fases de um relacionamento amoroso. Com a luxuosa participação do diretor austríaco Fritz Lang, o roteiro nos conduz à desagregação do romance entre Camille e Paul, vivido por Michel Piccoli.

Naquele tempo, toda musa tinha um muso —e vice-versa. Godard ajudou a moldar o homem da nouvelle vague. Em "Masculino-Feminino", de 1966, Jean-Pierre Léaud se tornou um herói, criando um espelho para a masculinidade. Nele, gerações de rapazes românticos se miraram, para talvez um dia encontrar uma Madeleine, personagem interpretada por Chantal Goya.

Um ano depois, o diretor se casou com a alemã Anne Wiazemsky, ainda menor de idade, elevando a atriz à posição de estrela em "A Chinesa", de 1967. Até a separação, três anos depois, o comportamento de Godard seria marcado pelo machismo, com atitudes violentas e até uma tentativa de suicídio, segundo relatou Wiazemsky nos livros que escreveu. Até a morte, Godard esteve ao lado da também atriz Anne-Marie Miéville, com quem manteve relação mais discreta.

A obra de Godard é também impactante por todas as suas impurezas. Sua morte torna a vida um pouco menos inteligente. Parte da história do cinema se encerra, deixando em preto e branco todos os nossos sonhos de um amor tórrido, digno de um filme francês.

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