​Barragens fascinam cineastas com mistura de progresso e destruição

Tema pauta o documentário "Paulistas", de Daniel Nolasco, lançado neste mês

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Resumo Proezas da engenharia que alimentam hidrelétricas pelo mundo, as barragens sempre inspiraram o cinema. A força do progresso que tais construções simbolizam, combinada à nostalgia do que desaparece em seu nome, está no documentário "Paulistas", de Daniel Nolasco, lançado neste mês.

 

Uma das contradições mais pungentes da modernidade está na combinação entre o fascínio suscitado pelo progresso e a nostalgia do que desaparece em seu nome.

São conhecidas as abordagens de Walter Benjamin sobre essa ambivalência, na leitura que faz da poesia de Baudelaire ou em sua instigante análise do desenho "Angelus Novus" (1920), de Paul Klee. Na visão do filósofo, esta última obra mostra o "anjo da história", que é arrastado pela força inexorável do progresso e, ao mesmo tempo, mantém os olhos fixos na paisagem de ruínas deixadas em seu encalço.

A figura da barragem, embora pouco estudada sob esse prisma, também condensa a associação entre a busca pelo novo e a melancolia suscitada por um mundo que passa a ser percebido como efêmero e transitório.

homens em moto apontando para lago
Cena de "Still Life" (2006) em que o personagem diz: "Você está vendo a ilha, lá longe? É o que sobrou da sua rua" - Reprodução

Proezas da engenharia, elas são estruturas que interrompem o fluxo natural de rios com o objetivo de represar volumes de água. As primeiras barragens, executadas na Antiguidade, tinham o objetivo de garantir o abastecimento e prevenir inundações, mas, a partir do século 19, elas passaram a ser construídas para produzir eletricidade.

Ao longo do século 20 e nas primeiras décadas do 21, a escala de tais construções se torna mais e mais monumental, batendo recordes sucessivos na capacidade de geração de energia, na quantidade de concreto empregada, no volume de água represado etc.

O cinema, surgido no final do século 19, expande-se durante o mesmo período. Menos de dois anos depois da demonstração histórica do cinematógrafo pelos irmãos Lumière, em Paris, seus operadores realizaram em Assuã, no Egito, o registro "Barragem do Nilo", que pode ser considerado o primeiro "filme de barragem" —apesar de sua curtíssima duração.

De lá para cá, a categoria não cessa de se alargar. A barragem interrompe o curso do rio e une suas margens, tornando inseparáveis construção e destruição, domínio da natureza pelo homem e ameaça catastrófica permanente, progresso e opressão. A essa ambiguidade corresponde uma série de obras fílmicas igualmente ambíguas.

É o caso de "Poema do Mar" (1958), longa ambientado no canteiro de obras da barragem de Kakhova, na União Soviética, finalizado por Youlia Solntseva após a morte de seu marido Alexandre Dovjenko. E também do episódio dedicado por Roberto Rosselini à construção da Barragem de Hirakud em seu filme "Índia: Matri Bhumi" (1959).

Nos dois casos, a exaltação à complexidade das construções é contraposta ao tom fúnebre que acompanha a destruição de povoados, o deslocamento de famílias e as mortes durante as obras.

Detentora do título de "maior central hidrelétrica do mundo", a usina das Três Gargantas, na China, também motivou uma série de documentários, vídeos de artistas, instalações e ficções.

casa com marcação em branco na parede externa
Imagem do filme "Still Life" (2006) mostra casa marcada com mensagem "A ser demolida". - Reprodução

É sobre ela o mais potente filme já realizado sobre o assunto: "Still Life - Em Busca da Vida" (2006), de Jia Zhangke. No longa, duas histórias paralelas de amor e separação acontecem na cidade de Fengjie, que prepara seu próprio desaparecimento.

O som das marretas é constante: demolidores golpeiam as paredes das construções centenárias do local antes que tudo seja coberto pela água. No horizonte, o relevo emblemático da região é quase invisível, como se a neblina acentuada na pós-produção prenunciasse o alagamento total de qualquer imagem possível.

Alguns cineastas consagrados se atraíram pela monumentalidade das barragens no início de suas carreiras. Em Portugal, um Manoel de Oliveira debutante filma a Barragem de Ermal, sobre o Rio Ave, para "Hulha Branca" (1932); na Suíça, o canteiro de obras da Grande-Dixence atrai o olhar do jovem Jean-Luc Godard, que roda ali seu primeiro curta-metragem, "Operação Concreto" (1955); na Síria, depois de uma temporada de estudos na França, Omar Amiralay se inicia no cinema com "Filme-Ensaio sobre a Barragem do Eufrates" (1970).

PAULISTAS

No Brasil, o cineasta Daniel Nolasco dedicou ao tema seu longa-metragem de estreia: "Paulistas", lançado neste mês, inspira-se no represamento do rio São Marcos para alimentar a usina hidrelétrica da Serra do Facão, em Goiás.

Nolasco nasceu no distrito que dá título ao filme, na zona rural do município de Catalão, profundamente afetado pela construção da barragem, de 2007 a 2011. O processo inundou as melhores áreas para criação de gado leiteiro da região e forçou a remoção da maioria dos agricultores e pecuaristas.

Cena do documentário "Paulistas", de Daniel Nolasco
Cena do documentário "Paulistas", de Daniel Nolasco - Divulgação

No documentário, vemos a população de morcegos que agora habita uma das poucas taperas restantes, parcialmente destelhada, com as paredes em ruína e resistindo à invasão iminente do matagal. Em outro momento, o estudante Samuel, de volta à casa dos pais para as férias, navega uma pequena canoa pelas águas que recobrem a vegetação onde passou a infância.

"Paulistas" inscreve-se não só na tradição de filmes de barragem do cinema mundial mas também em uma história brasileira feita de belos encontros com o tema. O diretor afirma sua ligação afetiva com "Narradores de Javé" (2003), de Eliane Caffé, espécie de fábula atemporal sobre uma cidade prestes a ser alagada.

Inevitável lembrar de "Gitirana" (1975), híbrido de ficção e documentário em que Jorge Bodansky e Orlando Senna filmam a construção de Sobradinho, no rio São Francisco, e o cotidiano de uma comunidade de trabalhadores deslocados em razão da obra. O longa problematiza a modernização do Nordeste ao trazer registros documentais de assembleias populares nas quais havia sido questionado quem seriam, de fato, os beneficiados com a construção de hidrelétricas.

Outros documentários mais recentes também se dedicam à questão. A barragem de Irapé, no Jequitinhonha, aparece em "Sumidouro" (2008), de Cris Azzi. As hidrelétricas do rio Madeira figuram em obras como "Jaci, Sete Pecados de uma Obra Amazônica" (2015), de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, e "Jirau e Santo Antônio: Relatos de uma Guerra Amazônica" (2016), realização do Movimento dos Atingidos por Barragens.

A ruptura da barragem da Samarco em Mariana também aparece em uma série de montagens audiovisuais, embora ainda faça falta uma produção de maior fôlego a respeito da tragédia.

Telhados permeáveis, paredes esburacadas, lembranças recobertas pela água, a força que jorra das comportas, o contraste entre a pequenez da figura humana e as estruturas gigantescas de concreto... Enquadrados por bela fotografia em "Paulistas", esses elementos são recorrentes em filmes de barragem, mas nem por isso podem ser considerados lugares-comuns.

Sua potência se mantém de um título ao outro. Não apenas por apresentar a dialética entre os encantos do progresso e o melancólico sentido de urgência diante do desaparecimento de paisagens, ecossistemas e modos de vida, mas também porque existe, no espectador, o desconforto de ver tais imagens por meio de uma arte baseada na luz elétrica.

Se é necessário manifestar-se contra a violência das barragens e os perigos que elas acarretam, nossa dependência delas é lembrada assim que o projetor se acende.

Visto por teóricos das imagens como "pós-fílmico", o século 21 das tecnologias digitais e telas individuais será, ao que tudo indica, ainda mais dependente de eletricidade. O "anjo da história", desenhado por Paul Klee, continua a ser empurrado para a frente, sempre observando a paisagem de destruição que a humanidade produz enquanto avança —entre outras coisas, para sustentar suas necessidades de energia.

Na era das informações que se apagam na mesma velocidade com que surgem, as barragens se tornam metáfora da imensidão de lembranças tornadas inacessíveis. Miragens —como a casa que o personagem Sanming procura em "Still Life", já debaixo d'água, ou as memórias de Samuel em "Paulistas", igualmente submersas.


Lúcia Monteiro, 40, é doutora em cinema pela Sorbonne Nouvelle Paris 3 e pela USP. 

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