Em autobiografia, Oliver Stone conta como passou das trevas do Vietnã à luz do cinema

Prestes a completar 74 anos, cineasta apresenta nova perspectiva da sua obra em 'Chasing the Light'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ana Maria Bahiana

Jornalista da área cultural e editora-adjunta do site goldenglobes.com, é autora, entre outros livros, de "Nada Será Como Antes - MPB nos Anos 70" (Civilização Brasileira, 1980)

[RESUMO] O cineasta Oliver Stone comenta em entrevista seu recém-lançado livro de memórias, no qual descreve os três momentos mais marcantes de seus primeiros 40 anos de vida: a Guerra do Vietnã, a desilusão com os EUA decorrente de sua experiência no conflito e a consagração no cinema com os filmes "Platoon" e "Nascido em 4 de Julho".

*

A capa da autobiografia de Oliver Stone diz tudo —ou quase tudo. Um rapaz de 21 anos, exausto, vestindo uma farda de combate em mau estado, sem capacete, o cabelo desgrenhado caindo sobre a testa, olha para a câmera como se não entendesse o que ela é. O olhar é de exaustão absoluta e algo mais complexo: horror, espanto, desorientação completa.

“O Vietnã me definiu”, Oliver Stone diz via Zoom, sentado diante de uma vasta estante com livros, instalado em uma grande escrivaninha onde, minutos antes do começo da conversa, ele autografava exemplares de “Chasing the Light”, o livro em que narra sua trajetória de “um filho do divórcio” até o duplo sucesso de “Platoon” (1986) e “Nascido em 4 de Julho” (1989), ambos sobre a Guerra do Vietnã.

“Chasing the Light” é um jargão do cinema: perseguir a luz, ou seja, filmar até o último segundo em que haja luz natural suficiente para captar uma imagem. Por baixo dessa expressão, Stone tece uma trama complexa de 330 páginas (mais dez de índice remissivo) em que perseguir a luz toma outros significados.

Oliver Stone com rio e árvores ao fundo
O cineasta Oliver Stone, aos 21 anos, durante participação na Guerra do Vietnã, em 1967 - Divulgação

“Tentei uma vez, lá atrás, com um livro de ficção, ‘A Child’s Night Dream’ (sonho noturno de uma criança)”, Stone conta. “Foi publicado em 1997. Era uma forma de abordar minha juventude, como uma narrativa de ficção. Este livro agora é uma obra de memórias mais que uma autobiografia. Estou usando a minha voz para narrar meus primeiros 40 anos de vida, como me tornei um adulto e como realizei um sonho que trazia no coração: fazer filmes, uma obsessão que eu tinha desde os 23 anos. É uma narrativa de como me tornei um escritor e um diretor.”

(Stone agora está adaptando o livro para ser dirigido por seu filho mais velho, Sean.)

Stone é modesto em sua descrição de “Chasing the Light”: ao longo das páginas, põe a nu seus altos e baixos, seus erros muitas vezes monumentais, seu vasto uso de drogas —inclusive uma prisão dias depois de sua volta do Vietnã, carregando uma farta trouxa de maconha, o que depois serviu de inspiração para algumas cenas de “O Expresso da Meia-Noite” (1978), filme que roteirizou—, suas relações conflituosas com mulheres, suas brigas com atores e colegas diretores, sua mistura de desencanto e carinho pelos Estados Unidos.

Além de magnificamente bem-escrito —Stone tomou gosto pelas palavras ainda criança, muitas vezes pedindo ao pai temas para serem desenvolvidos semanalmente, em uma espécie de newsletter familiar—, “Chasing the Light” oferece uma nova visão da sua filmografia. Temas de sua vida e de seus filmes se entrelaçam e se expandem à luz das confidências que compartilha.

Conversar com Stone, que completa 74 anos na próxima terça-feira (15), cria uma nova perspectiva de toda a sua obra —guiada, segundo suas próprias palavras, por três grandes temas.

Vietnã

Stone foi ao Vietnã três vezes: em 1965, em um programa de estudos no exterior, para ensinar inglês em uma escola católica em Saigon, atual Cidade de Ho Chi Minh; em 1967, em grande parte como uma forma de suicídio, como soldado raso na Infantaria do Exército dos Estados Unidos; e em 1991, para a filmagem de “Entre o Céu e a Terra”, lançado em 1993.

“O Vietnã e a Guerra do Vietnã deram o formato para quase todo o livro”, conta. “É uma experiência que leva a um tipo muito especial de obsessão, quando você está disposto a tudo para fazer um filme e ter que sofrer a frustração de tomar um ‘não’.”

Dirigir esses filmes sobre a guerra, diz, o “levaram a entender, afinal, o Vietnã e o que aconteceu no Vietnã”. “Na época eu não entendi nada. Mas isso é o que acontece: você tem a experiência quando é jovem, mas só a compreende muito mais tarde.”

A primeira visita ao país foi uma tentativa malsucedida de evitar seu profundo desinteresse pelos estudos na Universidade Yale, na qual seu pai também havia estudado. “A expectativa de um desempenho espetacular era óbvia”, descreve no livro. “O êxito tinha sido inoculado no meu corpo, nos meus ossos.”

Exausto pela crise da separação dos pais, nem a estadia em Saigon mudou seu desinteresse por seguir o caminho paterno. Voltou aos Estados Unidos em estado de depressão profunda. Sozinho em uma quitinete em Nova York, descobriu o poder de desabafar por meio do texto —e passou a escrever sem parar.

Submeteu a primeira versão do que viria a ser “A Child’s Night Dream” a algumas editoras, e nenhuma demonstrou interesse em publicar o livro. A depressão se aprofundou —“pensamentos sombrios tomaram conta de mim, uma força maior que eu mesmo”, escreve. “Como eu não tinha coragem de dar um fim a minha vida, talvez Deus, em quem me ensinaram a acreditar, pudesse fazer isso por mim.”

E assim, ele se alistou e foi parar no auge da Guerra do Vietnã, mergulhando simultaneamente em um universo de violência intensa —“ninguém deve, jamais, ter de testemunhar tanta morte”, diz no livro—, no uso de drogas para atenuar a barbaridade à volta e em toda a música que desconhecia até então: Motown, country e muito rock, “principalmente Jim Morrison, The Doors, música cabeça, psicodélica”.

O terceiro retorno ao Vietnã não está no livro, mas, ele me conta, “é o fechamento da trilogia, o modo de fazer um acordo de paz com o país e com o meu passado”.

“Platoon” e “Nascido em 4 de Julho” foram rodados nas Filipinas —“sou eternamente grato às Filipinas, pois tornaram realidade dois projetos que foram minha paixão”—, mas “Entre o Céu e a Terra” foi filmado em locação no Vietnã. “Tudo foi novo ali para mim”, diz. “Ter uma história do ponto de vista de uma mulher e realmente poder mostrar ao mundo a cultura, a relação com a terra e a espiritualidade dos vietnamitas.”

A trilogia fechou um ciclo de vida para Stone. Ao terminar “Entre o Céu e a Terra”, havia abraçado o budismo. “Na primeira vez, quando eu tinha 19 anos, o Vietnã abriu meus olhos para o mundo”, diz.

“Da segunda vez, meu sonho era morrer. Eu abraçava a morte. Da terceira vez, realmente entendi o quanto, para os vietnamitas, a terra onde viviam era sagrada, e como dali vinha toda a sua espiritualidade. A estupidez da guerra foi baseada na ignorância dos Estados Unidos.”

Cinema

Stone descobriu o cinema, nas palavras dele, razoavelmente tarde. Sua inclinação inicial sempre foi escrever, e seu impulso, diz, “sempre começa com algo que eu possa descrever em palavras”.

De volta do Vietnã, com três medalhas e cicatrizes de ferimentos graves, e financeiramente apoiado pelos recursos do governo como veterano de guerra, ele passou a maior parte do tempo, em Nova York, indo ao cinema e, como descreve no livro, “ingerindo qualquer tipo de droga que alterasse a minha consciência”. Até que um amigo deu uma ideia: que tal estudar cinema e ver um monte de filmes?

Inscrito no curso de cinema da Universidade de Nova York, Stone foi aluno do recém-formado Martin Scorsese, então professor-adjunto. “Ele tinha 20 e tantos anos, tinha feito uns curtas aclamados e estava lutando para conseguir dinheiro para seu primeiro filme, ‘Quem Bate à Minha Porta?’ (1967). Era a estrela da faculdade, tinha o cabelo até os ombros e falava a toda velocidade, nervosamente. Chegava caindo aos pedaços na aula, que era na primeira hora da manhã, porque tinha passado a noite toda vendo filmes.”

O curso deu “uma nova direção” ao seu impulso para escrever. “Eu escrevia e reescrevia minhas experiências no Vietnã de todos os modos possíveis”, descreve. Um de seus roteiros —”Seizure” (1974), um terror nível B— acabou sendo produzido, e Stone estreou como diretor.

Empolgado, reescreveu o que viria a ser “Platoon” e mandou o roteiro para agentes e produtores. O projeto é rejeitado porque “já tem filme demais sobre o Vietnã”, mas Stone consegue trabalho como roteirista de “O Expresso da Meia-Noite”.

É a virada —ele ganhou um Oscar e um Globo de Ouro pelo roteiro—, mas também um falso começo. Stone quase conseguiu o posto de diretor de “Nascido em 4 de Julho”, cujos direitos Al Pacino havia adquirido com a intenção de protagonizar a história. No entanto, em pleno ensaio o dinheiro acabou, deixando Pacino e Stone arrasados.

Acabou, então, escrevendo uma versão moderna de “Scarface”, de 1932, de Howard Hawks, que teria Sidney Lumet como diretor, Miami como cenário e Pacino como Scarface. Lumet desistiu no último minuto, e Brian de Palma assumiu a direção.

“Lumet era o meu herói. De Palma parecia sempre distraído, deixando que os atores fizessem o que achassem melhor”, Stone escreve. A sugestão de que Glenn Close fizesse o papel da mulher de Scarface recebeu uma gargalhada do produtor e do diretor —“ela tem cara de cavalo”, disseram.

O filme se tornaria um cult total, mas na época, 1983, crítica e público deram as costas. “Um festival de violência” e “Pacino está grotesco” foram algumas das reações. Para culminar, seu segundo filme como diretor —outro terror B, “A Mão” (1981)— foi praticamente abandonado nos cinemas e não obteve repercussão na crítica.

Al Pacino em cena de "Scarface"
Al Pacino em cena de 'Scarface' - IMDb/Reprodução

Stone confessa no livro que seus dois primeiros filmes eram “puramente um modo de exorcizar tudo o que carregava comigo, eram metáforas dos meus erros”.

Ainda escreveria mais três roteiros —“Conan, o Bárbaro” (1982), “O Ano do Dragão” (1985) e “Morrer Mil Vezes” (1986, dirigido por Hal Ashby, por quem tinha grande admiração)— e amargaria cinco anos até que a entrada de um novo jogador nas batalhas de Hollywood —a recém-fundada agência CAA, que viria a ser um gigante da indústria— tornasse realidade os dois filmes que, de fato, lançariam sua carreira como realizador.

“É mesmo inacreditável, quase, até para mim”, Stone me diz. “Lá estava eu com 39 anos, com as mãos vazias, minha carreira de diretor encerrada. E aí, em um gesto suicida, eu coloco todo o meu dinheiro em um filme absolutamente louco, ‘Salvador’ (1986), e, de repente, me perguntam se eu quero fazer ‘Platoon’, porque, segundo eles, ‘o ciclo do Vietnã não tinha terminado’. E até que eu saísse do outro lado, me desgastei, envelheci, me destruí internamente. Mas era o meu momento, e tudo mudou.”

Ele faz uma pausa. “A fome [de criar] está sempre aqui comigo.”

Estados Unidos

No livro e em nossa conversa, Stone reforça o quanto sua experiência no Vietnã mudou completamente sua perspectiva de vida. “Meu pai acreditava na América e no capitalismo, e eles acabaram com meu pai”, ele escreve (seu pai, Louis Stone, era corretor da Bolsa de Nova York e foi a inspiração para seu filme “Wall Street”).

“Quando voltei do Vietnã, eu não acreditava em mais nada”, ele diz. “Eu tinha visto tudo. Não apenas a violência, mas a corrupção, a estupidez. Cada passo que eu dei, como realizador, foi um modo de amadurecer politicamente.”

O que ele chama de “o desencanto com a América” vem em duas trilogias: “O tema da corrupção vem em ‘Wall Street’ (1987), ‘Um Domingo Qualquer’ (1999) e, finalmente, ‘Snowden’ (2016)”.

“Minha visão de três presidentes e o que aconteceu com eles —‘JFK’ (1991), ‘Nixon’ (1995) e ‘W.’ (2008)— é um ciclo de guerras e traições de princípios, de promessas. A decisão de seguir pelo caminho do militarismo, como uma forma de economia, foi clara e fatal. E além deles, é claro, tem a série ‘A História Não Contada dos Estados Unidos’ (2012-13).”

Ele faz uma pausa e retoma: “Infelizmente, nós nos recusamos a reconhecer a importância da história. Se os Estados Unidos tivessem tomado outro caminho depois da Segunda Guerra Mundial, estaríamos em outro curso. Não teríamos essa obsessão por um inimigo. Mas resolvemos que precisávamos de inimigos para ser uma grande nação. E, em vez disso, criamos um pesadelo”.

Chasing the Light

  • Preço R$ 148 (352 págs.); R$ 52 (ebook)
  • Autor Oliver Stone
  • Editora Houghton Mifflin Harcourt
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.