Descrição de chapéu
Josué Pellegrini

Plano de ajuda da União sem empenho de estados só leva a aumento da dívida pública

Reequilíbrio fiscal dos estados depende de reforma constitucional que controle despesa obrigatória

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Josué Pellegrini

Diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado

[RESUMO] Para economista, planos de ajuda da União a estados, com o objetivo de flexibilizar suas dívidas, não são efetivos isoladamente para promover o reequilíbrio fiscal. Sem uma reforma constitucional que forneça instrumentos de controle das despesas obrigatórias e o empenho dos estados, ajuda periódica da União implica tensão nas relações federativas e aumento da dívida pública federal.

*

O projeto de lei complementar (PLP) 101, de 2020, está em tramitação no Congresso Nacional. Trata-se de uma versão bem ampliada do chamado Plano Mansueto, enviado pelo Executivo federal em 2019.

A aprovação do PLP 101/2020 coroará uma sequência de mudanças na relação financeira entre a União e os estados, iniciada ao fim de 2014. As novas regras alteraram os termos da dívida dos estados junto à União, levando a condições bastante favorecidas, com juros limitados à Selic e 240 meses extras para efetuar a amortização.

Em que pese a flexibilização, os maiores devedores, à exceção de São Paulo, deixaram de pagar as prestações da dívida para a União, assim como os compromissos relativos às operações de crédito tomadas junto a terceiros, o que obrigou a União a honrá-los, na condição de garantidora dessas operações.

Plenário da Câmara dos Deputados durante votação de proposta sobre renegociação da dívida dos estados - Pedro Ladeira - 20.dez.16/Folhapress

O Rio de Janeiro regularizou sua inadimplência ao aderir ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), destinado aos estados em situação fiscal delicada. A adesão ao RRF garante o refinanciamento automático das prestações e demais compromissos, incorporando-os ao saldo devedor junto à União, nas mesmas condições dos contratos originais. Em contrapartida, os estados se comprometem a ações destinadas ao reequilíbrio das suas respectivas contas.

Os outros dois grandes devedores, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, acompanhados de Goiás e Rio Grande do Norte, negociam com o Tesouro Nacional o ingresso no RRF, mas recorreram a liminares judiciais para suspender os pagamentos. Como as liminares antecipam as vantagens da adesão ao regime, as tratativas se estendem sem conclusão.

O saldo dos pagamentos suspensos em razão da adesão do Rio de Janeiro ao RRF chegou a R$ 61,5 bilhões em agosto de 2020, enquanto os valores suspensos advindos das liminares alcançaram R$ 37,3 bilhões em julho, sendo R$ 21,7 bilhões relativos a Minas Gerais. O total chega, portanto, a R$ 98,8 bilhões.

O PLP 101/2020 mantém o RRF, mas com alterações, a exemplo do alongamento para dez anos do prazo de permanência do estado no regime e da flexibilização da situação fiscal requerida para a autorização da sua adesão.

Se a proposta for aprovada, os R$ 98,8 bilhões acima referidos serão refinanciados junto à União, logo que esses cinco estados entrarem no regime. Além disso, o montante refinanciado aumentará continuamente, seja em razão de novos vencimentos dos compromissos dos cinco estados, seja pela possibilidade de adesão de mais seis estados ao RRF, considerados os indicadores fiscais de 2019.

Já os estados que não entrarem no RRF poderão contratar, de acordo com o PLP 101/2020, novas operações de crédito garantidas pela União por meio de outros dois programas. Em um destes, são contemplados dez estados em boa situação fiscal e, no outro, seis a 12 que atualmente, em razão de sua situação fiscal, não podem receber garantias da União.

Vale registrar que a intensa liberação de garantias para estados em situação fiscal inadequada, especialmente entre 2012 e 2014, obrigou a União a honrar R$ 26,7 bilhões em compromissos inadimplidos do início de 2016 até outubro de 2020, sem a possibilidade de executar as contragarantias em razão das liminares judiciais.

Assim, com a adesão de até 11 estados ao RRF e com o maior espaço aberto aos outros para contratar operações de crédito garantidas, a exposição da União aumentará bastante com a aprovação do PLP 101/2020. Em agosto de 2020, essa exposição já era de R$ 823,6 bilhões, composta de R$ 578,3 em dívidas e R$ 245,3 bilhões em operações garantidas.

É preciso ter claro que todos esses meios que aliviam a situação financeira dos estados são financiados pelo aumento da dívida pública da União junto ao mercado.

A honra de garantias, sem a execução das contragarantias, eleva as despesas financeiras do governo federal, enquanto a renegociação de passivos e/ou a suspensão dos pagamentos reduzem as receitas financeiras. Como consequência, o déficit nominal da União sobe e, com ele, a necessidade de financiamento junto ao mercado.

Do mesmo modo que o RRF em vigor, o PLP 101/2020 também prevê contrapartidas como condição para a obtenção dos benefícios. Contudo, os estados interessados nas operações de crédito garantidas podem escolher 3 entre 7 medidas previstas na lei, o que abre espaço para a escolha de opções já em vigor ou com pouco impacto fiscal.

No caso dos que almejam ingressar no RRF, as exigências são mais severas, pois as sete medidas precisarão ser tomadas, além do cumprimento de metas e compromissos e o respeito a uma lista de vedações.

Em que pese esses dispositivos, a experiência com planos de ajuda nos últimos anos indica que não são poucas as chances de que o efeito mais concreto do PLP 101/2020 se restrinja ao alívio financeiro dos estados à custa de maior exposição da União junto a esses entes e de aumento da dívida pública junto ao mercado.

No triênio 2012-2014, o intenso fluxo de operações garantidas pela União serviu para financiar despesas de pessoal. Desde 2015, os alívios proporcionados pelas renegociações da dívida e pelas liminares não foram aproveitados pelos estados para melhorar sua situação fiscal.

Já a aplicação do RRF no Rio de Janeiro não foi bem sucedida. Após três anos, os indicadores fiscais permanecem ruins. A dívida junto à União cresceu R$ 52,1 bilhões, e a dívida consolidada líquida em relação à receita corrente líquida passou de 2,28 para 3,17 vezes.

Outros estados em situação fiscal igualmente delicada, fora do RRF, como Rio Grande do Sul e Goiás, parecem evoluir mais favoravelmente desde 2019. Isso mostra que, sem o compromisso dos estados, o reequilíbrio de suas contas pouco avançará apenas com planos de ajuda, por mais bem-intencionados e elaborados que sejam.

A experiência com a tentativa de disciplinar os estados por meio de leis complementares também não dá margem a otimismo, ainda mais com a presença das liminares judiciais. Nos últimos anos, leis dessa espécie dotadas de contrapartidas foram descumpridas diversas vezes.

Dois casos são emblemáticos, mas não únicos. Um é o descumprimento dos limites de despesa de pessoal previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal (lei complementar 101, de 2000), com subestimativa de despesa, inclusive. O outro é o desrespeito ao teto de gastos previsto na lei complementar 156/2016.

Outro exemplo é a lei complementar 159, de 2017, que criou o RRF. Ela prevê a redução gradual dos benefícios após três anos de vigência, algo que, aparentemente, não acontecerá no caso do Rio de Janeiro. Esse poderá ser o destino da redução linear dos benefícios à razão de 1/10 por ano prevista no PLP 101/2020.

A propósito, esse PLP contempla solução para as pendências advindas do descumprimento das referidas leis complementares, incluindo dez anos de prazo para que os estados se adequem aos limites da despesa de pessoal. Um cenário bastante plausível é que, em pouco tempo, outra lei complementar venha resolver pendências advindas da aplicação da lei complementar que se originar do PLP 101/2020.

Outro risco importante é o recurso às liminares por parte dos estados durante a implementação do RRF, especialmente se não houver comprometimento com o reequilíbrio fiscal.

Esse risco existe na fase inicial, quando se verifica a efetiva adoção das medidas prévias, e em fase posterior, durante a verificação do cumprimento das metas e dos compromissos e do respeito às vedações. Esse cumprimento dita a velocidade de redução dos benefícios e a extinção da aplicação do regime.

Enfim, os planos de ajuda da União introduzidos por meio de leis complementares não parecem aptos a, isoladamente, promover o reequilíbrio fiscal dos estados. O principal problema fiscal desses entes, assim como da União, é o peso e a dinâmica das despesas obrigatórias. O comprometimento dos estados com o controle dessa variável é decisivo, pois há importante espaço de gestão sem a necessidade de mudanças legais e constitucionais.

Entretanto, somente empenho dos estados e planos de ajuda não bastam. É preciso que sejam ancorados em reformas constitucionais que forneçam instrumentos para o controle das despesas obrigatórias.

Assim, é fundamental a aprovação do que se pode chamar de reforma fiscal, com base em propostas de emenda constitucional que tramitam no Congresso. Há também as reformas administrativa e previdenciária, muito úteis se forem capazes de, ao menos, equiparar as regras vigentes nos estados às que prevalecem no âmbito federal.

Nesse contexto, o papel dos planos de ajuda seria redimensionado, de modo a acompanhar e dar suporte técnico para a implementação das reformas e de políticas de pessoal mais racionais, além de mudanças legais com forte impacto fiscal no longo prazo. Inclui-se aí a instituição da Previdência complementar, remuneração compatível com o mercado e ascensão profissional baseada no mérito.

Insistir em ajuda da União como tem sido feito há anos, sem o suporte das reformas e o empenho dos próprios estados, só servirá para formalizar um aumento contínuo da exposição da dívida dos estados junto à União e desta junto ao mercado, sem que ocorra ajuste fiscal relevante.

Com o tempo e sem que o histórico dos acontecimentos seja esclarecido, o diagnóstico de que a dívida é impagável se consolidará, impondo como solução generosos descontos. Talvez seja esse o resultado esperado por alguns atores envolvidos com questões federativas.

Trata-se de um caminho custoso para a sociedade, ao perpetuar a atual situação de desajustes e cumprimento insatisfatório das atribuições constitucionais dos estados. Tudo em meio ao desgaste das relações federativas, liminares judiciais e, ao fim e ao cabo, aumento da dívida pública junto ao mercado.

As tensões vividas pela gestão dessa dívida nos últimos meses deixam clara a importância do compromisso com uma política fiscal sustentável. Espera-se que essas tensões não levem apenas ao fechamento das contas do Orçamento de 2021 e sim a uma verdadeira reforma fiscal, sem a exclusão dos estados, como ocorreu na reforma da Previdência. Caso contrário, haverá mais do mesmo à vista.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.