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Independência da Argélia via revolução não é extremismo, escreveu Fanon; leia artigo

'Escritos Políticos', coletânea de textos jornalísticos do psiquiatra, é publicado pela primeira vez no Brasil

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Frantz Fanon

Psiquiatra, filósofo político e militante revolucionário. Nasceu em 1925 na Martinica, participou da guerra de independência da Argélia e se tornou um dos mais importantes intelectuais do terceiro-mundismo, do pan-africanismo e do anticolonialismo. Autor de “Pele Negra, Máscaras Brancas” e “Os Condenados da Terra”, entre outros livros, morreu em 1961, aos 36 anos

[RESUMO] Publicado em setembro de 1957 no jornal El Moudjahid, da FLN (Frente de Libertação Nacional) da Argélia, este artigo de Frantz Fanon (1925-1961) advoga que a independência argelina é o objetivo fundamental do movimento revolucionário contra o colonialismo francês. O texto é parte do livro “Escritos Políticos”, que será publicado pela primeira vez no Brasil na quarta-feira (16) pela editora Boitempo.

​Independência nacional, a única solução possível

O termo independência é suficiente, por si só, para levantar contra nós a unanimidade dos franceses. Se por um lado ele tem o dom de mergulhar em surdo ódio os imperialistas inveterados, por outro não deixa de exasperar também os homens de esquerda cujas reações chauvinistas se tornaram incontroláveis. A opinião pública francesa não nos perdoa por reivindicarmos com tanta convicção a soberania plena e integral de nosso país. Taxa-nos de infantilismo e reprova-nos a paixão fetichista que nos teria feito escravos de uma palavra.

Tomada por um ataque de nacionalismo, essa mesma opinião pública não hesita em questionar a ideia de independência nacional em geral. O conceito seria obsoleto e já não corresponderia às exigências de nossa época, em que prevalecem os grandes conjuntos políticos em detrimento das pequenas potências. Ela não compreende a conveniência da independência, que já não seria uma promoção, mas um retrocesso para a Argélia, situada às portas da Europa e tendo ainda tudo a ganhar permanecendo no regaço da França.

O psiquiatra e escritor Frantz Fanon
Retrato do psiquiatra Frantz Fanon - Divulgação

Um objetivo fundamental e não uma reivindicação tática

Na França, as pessoas tomaram em mãos o problema argelino para obscurecer seus dados e colocá-lo em termos ininteligíveis. Apresentaram múltiplas soluções, frequentemente contraditórias, sempre ilusórias. Nessa profusão de projetos, a solução válida, a única que importa para a paz, isto é, a independência da Argélia, só é considerada para ser sistematicamente descartada. De todas as controvérsias e discussões que se instauraram entre as autoridades francesas, a conclusão é que se trata de uma solução injustificada e, no fim das contas, arbitrária.

Ao reivindicá-la, os argelinos estariam manifestando uma posição extremista e essencialmente passional. A França não seria obrigada a aceitá-la e não se deixaria levar por esse descomedimento. Aliás, há argelinos sensatos que pensam à surdina que a reivindicação de independência não é mais que uma posição de fachada, um artifício de propaganda, sendo a realidade completamente diferente. Enquanto se espera que esses “moderados” possam levantar a voz, a guerra deve continuar. Com a contribuição do cansaço do povo, virá uma fase de negociações em que a França, em situação de força, imporá o estatuto “liberal” que conquistará a adesão de uma parcela substancial da opinião pública argelina, quando não a sua unanimidade.

Evidentemente essa concepção é errônea; expressa desejos e expectativas, mas não corresponde ao espírito real que anima a FLN. Seu erro é reduzir a uma reivindicação tática o que se afirma desde o início como um objetivo fundamental da revolução. Mostra a incapacidade da França de apreender os dados verdadeiros do problema argelino e a solução que ele requer. Esse problema não pode ser abstraído do contexto revolucionário no qual ele se insere desde 1º de novembro de 1954, e a solução que ele exige não pode ser encontrada fora dos limites desse contexto.

O povo argelino pensa suas relações com a França em termos de oposição irredutível entre seus interesses e os da presença colonial. Não se trata, para ele, de esperar que o colonialismo se reformule, que se mostre menos cúpido e menos feroz, que afrouxe sua opressão. O sistema é condenado em bloco, e sua queda só pode se consumar realmente pelo advento da independência. Retomando e esclarecendo esse ponto de vista, a FLN o expôs em novembro de 1954: a independência, a partir dessa data, era colocada como uma reivindicação-limite, e afora ela nenhum acordo seria possível entre o povo argelino e a França.

Uma ideia inscrita na realidade argelina

A opinião pública francesa não consegue esconder seu espanto ao ver um país como a Argélia, considerado uma “província francesa”, alcançar num movimento único uma existência nacional objetivada num Estado independente. Nações cuja situação jurídica apresentava menos dificuldade tiveram de cumprir por etapas o caminho que as levava à independência. O salto único que a Argélia quer dar não comportaria nenhuma noção racional e corresponderia, portanto, a uma empreitada suspeita e arriscada.

Seja como for, a opinião pública francesa recusa-se a tomar consciência lúcida da mudança que está ocorrendo na Argélia. Limita-se a negá-la. Só lhe chega aos ouvidos a reivindicação inaudita que a FLN formula em termos audaciosos. Choca-se com ela e a atribui a pessoas passionais que transpõem para a política seus sonhos delirantes. Não compreende que o povo argelino não pode aceitar a necessidade das transições que o conduziriam gradualmente à autonomia. É que ela não se dá bem conta da natureza específica da opressão colonialista na Argélia, opressão que contribuiu para o desencadeamento do processo revolucionário.

Decretar a Argélia departamento francês será instalar no país uma opressão total, apagar uma nação do mapa, despersonalizar um povo, reduzi-lo à deposição e à morte; mas será também determinar nesse país uma situação explosiva, um estado de tensão permanente, e fazer surgir contradições cuja profundidade será tamanha que o sistema que as engendrou estará impossibilitado de assumi-las.

Em outras palavras, a forma extrema que o colonialismo francês tomou na Argélia —colonialismo de povoamento do tipo sulista— determinou reações não menos extremas. Estas não se resumem a acessos de violência coletiva e movimentos incontroláveis de revolta e desespero. Traduzem-se por um lento amadurecimento da consciência política, que elas ampliam ao lhes conferir uma dimensão revolucionária. Interiorizando-se e desenvolvendo-se em profundidade, determinaram no povo o surgimento de uma lucidez cada vez maior que, ao lhe dar uma ideia exata de suas possibilidades de sobrevivência e de seus interesses essenciais, oferece-lhe a possibilidade de questionamento implacável do sistema colonial, não por uma ou outra forma específica que ele assuma, mas por sua essência e seus fundamentos objetivos.

Foi sob a extraordinária pressão que se exercia sobre ele, excluindo qualquer possibilidade de evolução normal, que se fez a educação política do povo argelino. Baseada numa pedagogia revolucionária, essa educação constitui uma experiência original que desempenhará papel determinante no futuro da Argélia.

É próprio do neocolonialismo prevenir situações revolucionárias, introduzindo métodos evolutivos em seu sistema. A experiência mostra que muitas vezes ele foi bem-sucedido e conseguiu preservar por muito tempo situações coloniais que poderiam ser insustentáveis. Na Argélia, justamente, a situação é insustentável, e o neocolonialismo perdeu sua oportunidade histórica. Surgiu uma defasagem histórica entre o povo argelino e a França; enquanto ela coloca o problema em termos de evolução, ele se expressa em termos de revolução e traduz a situação efetiva em que se encontra.

Um objetivo realista

A ideia de independência encontra forças menos no nível da consciência psicológica dos dirigentes da FLN do que na realidade colonial objetiva em que se inscreve dialeticamente. Ela seria intransigência abstrata e vazia de conteúdo, se não fosse, tal como a revolução que a reivindica, fruto de um profundo amadurecimento e resultado de um longo avanço subterrâneo.

Em tempo “normal”, a recusa de reformas estruturais e modos sérios de evolução seria expressão de total ausência de inteligência por parte dos responsáveis. Em período de engajamento revolucionário, essa recusa traduz uma exigência fundamental. Aceitar uma fórmula centrada em algo que não a independência é renunciar a derrubar o colonialismo quando se tem a possibilidade de fazê-lo, é deixar subsistir seus germes virulentos, que logo engendrarão um sistema de opressão mais monstruoso do que o anterior.

A revolução é essencialmente inimiga das meias medidas, dos compromissos, dos recuos. Levada a termo, salva os povos; interrompida a meio caminho, causa sua perdição e consuma sua ruína. O processo revolucionário é irreversível e inexorável. O senso político ordena que não se obstrua sua marcha.

Ilustração de Frantz Omar Fanon para ilustríssima
Ilustração de Frantz Omar Fanon - Jairo Malta

A intransigência da FLN, portanto, tem conteúdo. É uma intransigência revolucionária que não se contenta com palavras vãs. Longe de traduzir um irrealismo político, é a exigência de um realismo revolucionário. O que constitui a força do povo argelino é ele saber o que quer e aonde vai. Quer sua independência e sabe que é uma possibilidade a seu alcance que ele acabará por atingir.

A França, ao contrário, não sabe o que quer nem aonde vai. Recusa-se a reconhecer a validade desse objetivo, mas sua atitude continua negativa e estéril, incapaz de se transformar em conduta dinâmica e eficaz. Limita-se a recusar a independência, mas ignora a nova realidade criada na Argélia; ela arquiteta planos, elabora leis-quadro, mas raciocina num contexto pré-revolucionário e move-se em plena irrealidade, no empíreo das ideias de prestígio, de grandeza, de laços permanentes e indissolúveis.

Nesse contexto, a independência argelina parece uma quimera, e os argelinos são chamados de quiméricos. O que é considerado uma impossibilidade na França é transposto para a Argélia e transformado numa impossibilidade objetiva e absoluta. Certamente, é partir de uma análise muito frágil da realidade e correr um risco declarar, como o sr. Mauriac, que nenhum governo francês concederá a independência à Argélia.

Um objetivo em plena realização

Diga o sr. Mauriac o que disser, independência não se concede e não depende da vontade dos governos franceses concedê-la ou recusá-la. A independência não é um bem que se dá, mas uma realidade viva que se constrói.

Três anos de guerra revolucionária abalaram profundamente o sistema colonial. Ele já não passa de um edifício deplorável, caindo em ruínas. É sobre esse material, em plena desagregação, que os técnicos da “pacificação” pretendem assentar suas reformas. Enquanto se esforçam para conter muros que desmoronam por todos os lados, novas fundações são escavadas em toda a terra argelina sobre as quais se ergue a poderosa construção da independência nacional.

A independência desceu do céu das possibilidades ideais. Fez-se carne e vida, incorporou-se à substância do povo. Doravante, este exerce a sua soberania no âmbito de seu Exército e de sua administração. É aí que se pode tocar com as mãos o prodigioso êxito da revolução argelina.

Do argelino do período colonial surgiu um homem novo, o argelino da era da independência. Ele recupera sua personalidade na ação, na disciplina, no senso de suas responsabilidades, e redescobre a realidade, que ele agarra com as mãos e transforma, reatando com ela relações eficazes. Torna-se organizador, administrador, soldado e cidadão responsável.

A única solução possível

Ao manter a independência como condição da paz, a FLN não está obedecendo a um extremismo gratuito. Concebendo sua política numa perspectiva revolucionária, ela implementou os meios de fazê-la triunfar. O problema argelino há muito tempo deixou de ser assunto de homens políticos. Uma vez que ambas as partes fazem suas escolhas, ele se coloca em termos militares e sua resolução depende essencialmente da evolução da relação das forças em confronto.

É fato bem conhecido que o inimigo não pode contar com uma vitória decisiva e a guerra pode durar indefinidamente. É fato menos conhecido, mas em breve não o será, que as condições de um desastre militar do lado das tropas imperialistas estão cada vez mais efetivadas. A menos que a sensatez se restabeleça na França, o quarto ano da revolução será marcado por uma intensificação da guerra, em que a possibilidade de um desastre francês não pode ser descartada.

Por outro lado, a ideia de independência avançou imensamente no plano internacional. Essa evolução é perceptível mesmo na opinião pública americana e europeia; ela mostra claramente que, hoje, a FLN já não é a única a reivindicar a independência e que a maioria esmagadora das nações lhe fazem eco. A França não poderá resistir por muito mais tempo à maré internacional desencadeada por essa obstinação. Deverá sair de seu imobilismo precário e pronunciar a palavra tabu que hoje ela teme.

A Argélia tornou-se um país que escapa ao domínio da França. Por mais que esta elabore fórmulas emergenciais, novos estatutos para manter a antiga colônia, tais esforços são tardios e inúteis. A nação argelina retomou a liberdade e entrou resolutamente na era da independência.

Escritos Políticos

  • Preço R$ 49 (160 págs.)
  • Autor Frantz Fanon
  • Editora Boitempo

Tradução de Monica Stahel.

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