Energia elétrica nasceu sob suspeita, escreveu Geraldo Mayrink no apagão de 2001; leia artigo

Jornalista discute a história da domesticação da noite pelas luzes e a falta de planejamento do setor elétrico no Brasil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Geraldo Mayrink

Jornalista, nasceu em 1942 em Juiz de Fora e, ao longo de quatro décadas, trabalhou nas Redações das principais publicações do país. Autor, entre outros livros, de “Juscelino” e “Escuridão ao Meio-dia”. Morreu em 2009

[RESUMO] Em artigo inédito, Geraldo Mayrink reflete sobre a a crise do apagão de 2001 e a relação da humanidade com a luz e a escuridão. Brasil vive situação semelhante hoje, com o possível esgotamento dos reservatórios das hidrelétricas e um novo racionamento de energia. O artigo faz parte de uma série de textos do jornalista, morto em 2009, reunidos em um site em sua homenagem por seu filho Gustavo Mayrink.

Faça-se a escuridão

Foi mandado que se fizesse a luz, e os porteiros de alguns prédios de bairros elegantes de São Paulo mandaram ver, ao pé da letra. Quem passa hoje pelas ruas de alguns recantos desta formidável metrópole, mesmo nas trevas iniciais da noite, é fulminado com holofotes, numa iluminação ambígua: as luzes seriam para aplaudir ou para denunciar, facilitando a indicação do passante? Seria uma saudação? Seria para detectar suspeitos por circularem na via pública?

Andando num desses lugares, o passante deveria soprar beijos de agradecimento pela homenagem ou, pelo contrário, mandar bananas aos holofotes, com gestos obscenos? E em seguida sair em desabalada carreira.

Não se sabe. Em qualquer caso, pensaria, agradecido: “Obrigado, porteiro do holofote, por me salvar a vida, evitando com suas luzes que escorregasse em tanto cocô de cachorro na calçada”. Em outro, praguejaria: “Maldição ao porteiro do holofote, que me ilumina de bermudas e barba malfeita, às vezes até com uma dama desconhecida ao lado, que não era para ser vista ou iluminada”.

Este fenômeno é fenomenal, pois acionou seus interruptores no pós-apagão. Alguém se lembra desta era anterior, a do apagão? Foi outro dia.

Era preciso, naquele outro dia recente, apagar luzes, sob pena de multas. Apesar disto, a vida noturna iluminada, como opção democraticamente acessível a todos, era uma conquista tão nova que surpreendeu os sinos já terem começado a repicar por ela. “Apage Satana!”, oravam almas penadas de antigamente, mas estavam querendo apenas implorar que o demônio se afastasse delas. “Apage” não queria dizer “apagão”, e uma tradução mais que livre diria: “Dá o fora, capeta!”

O Príncipe das Trevas não obedeceu, mas assim mesmo se fez a luz, como havia sido ordenado. A inovação chamava-se eletricidade. Prometia tudo desde 1882, quando alguém apertou o primeiro interruptor.

A eletricidade já nasceu sob suspeita, como tudo no mundo de hoje. Quando foi apresentada na Exposição de Paris, três anos antes, um professor da Universidade de Oxford, Erasmus Wilson, opinou: “Quando esta exposição fechar, ninguém mais vai falar em luz elétrica”. Até hoje há quem lhe dê razão.

Quando o apagão brasileiro chegou, mais de um século depois, o diretor de cinema e ensaísta Arnaldo Jabor gargalhou de alegria Taleban, iluminado pelas luzes de um estúdio de televisão: “Vai ser muito bom. Nossas cidades precisam escurecer, parar de se comportar como prostitutas com aquelas pérolas no pescoço, como se fossem postes de iluminação”.

Pode-se sempre esperar de um criminoso (e não é o caso do grande diretor de "Eu te Amo" e "Eu Sei que Vou te Amar") uma prosa de estilo extravagante. Por isto Jabor enxergou virtudes nas trevas. Chamou o terrorista Osama Bin Laden de “grande terapeuta do Ocidente”, ao qual teria devolvido um certo senso da realidade. E a mensagem que vem das cavernas do Afeganistão, onde luz elétrica, conforme o uso que se fizer dela, é pecado.

Apesar da interpretação original e digamos assim radical do cineasta, a luz elétrica veio para o bem. Foi um acontecimento que parecia ter um destino glorioso, da invenção do cinema à proliferação das redes de televisão e dos fliperamas. Mas na época noticiou-se o contrário. Tentem acender uma vela naquelas trevas para enxergar o que houve.

As ferrovias gerariam catástrofes, por causa de seus trens circulando na alta velocidade de quarenta quilômetros por hora, afirmou o Times de Londres, em 1850. O telégrafo tornou a “vida moderna insuportável”, reclamou o mesmo jornal, em 1879.

A máquina de escrever, em 1887, foi detestada pelo Penman’s Art Journal de Boston, que considerou a novidade “mera curiosidade mecânica”. Por que a luz escaparia destas condenações?

Antes restrita ao dia, a humanidade começou a existir plenamente também à noite (e assim o crime passou a operar em bem-iluminadas jornadas de 24 horas, mas esta é outra história). Agora, a noite se abre de novo para as informes criaturas que a luz expulsou para as cavernas e outros buracos negros.

É surpreendente, mas não muito. Quando a previsão dos homens falha, é a vontade dos deuses que prevalece. A primeira ordem de Deus, no dia da criação, foi: “Faça-se a luz, e a luz se fez”.

A civilização começou com o fogo, e seu primeiro centro de convívio social foi a fogueira, há 350 mil anos na China. Viveram-se séculos à luz pálida de vagalumes aprisionados em gaiolas para iluminar as trilhas, gravetos incandescentes, peixes oleosos espetados em paus, queimando para dar luz, e também com a ajuda de velas de sebo. Uma só em cada casa. Os pobres europeus usaram lâmpadas de gordura até o século XVIII e em alguns países elas ainda não foram aposentadas.

A iluminação doméstica em palácios data de 3.000 anos, mas era privilégio dos muito ricos. Os pobres pautavam suas vidas pelo sol e ai de quem desobedecesse às ordens do governo. Um édito do rei inglês Eduardo (1239-1307) começava assim: “Que ninguém seja tão ousado a ponto de ser encontrado perambulando pelas ruas depois do toque de recolher”. Mas terminava com uma ressalva: “A menos que seja um grande senhor”.

A escuridão talvez seja o mal supremo porque só se conhece o que se vê, diz o ensaísta inglês A. Alvarez no seu livro "Noite" (Companhia das Letras): “O que pode ser ouvido, sentido ou cheirado aterroriza porque não tem forma – nada é definido, nada é nítido”. Aí, a imaginação deixa os demônios à solta para serem moldados segundo o medo de cada um.

A noite, a última fronteira, só pode ser tolerada se iluminada artificialmente, com postes na rua e polícia. Assim ela foi dominada e ultrapassada. “Restou, porém, a escuridão interior, dentro da mente, porque o verdadeiro medo talvez seja o da própria escuridão, e ele é instintivo”, escreve Alvarez. E agora?

O caos original foi banido por Deus, mas está prestes a estender seu manto de breu por força da blasfêmia humana. Certos mandatários se portam hoje como herdeiros do Príncipe das Trevas. Não sabiam, por não terem escutado que a luz era para ser feita, que falta de chuva e planejamento apagariam as lâmpadas das casas. Era inevitável, dizem, e assim tentam renegar até uma das ideias mais generosas de Marx, a de que a humanidade não se propõe problemas que não possa resolver.

Portanto, que ninguém seja tão ousado a ponto de acender holofotes alvejando os que passam pelas calçadas, a não ser que se trate de um grande senhor —como no reinado do rei Eduardo— ou possa pagar multas, como alguns fazem hoje.

“Por mais que se ilumine a noite, o problema moral da escuridão continua a existir”, observa Alvarez. Tudo como no tempo da luz a sebo e das tragédias de William Shakespeare. Numa delas, as velas se apagam em cena e um personagem diz, falando pelo bardo: “Não é escuridão. É ignorância”.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.