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Martim Vasques da Cunha

Como Taylor Swift provoca delírio mortal nos fãs

Cantora explode com canções sobre amores violentos

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[RESUMO] Maior fenômeno da música atual, Taylor Swift provou-se uma artista de fato nos últimos anos, capaz de fazer de sua música uma questão de vida ou morte para fãs, como se verifica agora no Brasil. Em paralelo que a conecta com a escritora Flannery O´Connor, a cantora fala em suas canções sobre como a violência dos relacionamentos amorosos pode abrir a possibilidade de salvação no limiar da mortalidade.

Certa vez o cantor e compositor Lou Reed disse: "As pessoas estão morrendo por qualquer coisa. Por que não morrem pela música? Isso mesmo: deveriam morrer por ela. Não seria tão bonito?".

Hoje a única artista capaz de realizar tal feito é Taylor Swift —e o Brasil sentirá esta força perturbadora na apresentação do seu show multimilionário, The Eras Tour.

Recentemente, tivemos dois exemplos disso; um na ficção, outro na vida real.

O primeiro é o do personagem Richie, da série de TV "O Urso", interpretado por Ebon Moss-Bachrach. Um típico perdedor, divorciado, sem direção na vida, ele tem como único apoio a filha pequena —por coincidência, uma fã de Taylor Swift que deseja ir a um show dela.

Ao mesmo tempo em que tenta conseguir ingressos, Richie, gerente de uma lanchonete prestes a ser remodelada como um restaurante pelo seu primo, o überchef Carmine, faz estágio em um local extremamente sofisticado e famoso no mundo gastronômico de Chicago.

Lá, ele passa por uma transformação. De um sujeito alheio ao mundo, reconquista o prumo e passa a ter um novo propósito em seu trabalho. O momento em que isso acontece é justamente quando escuta no rádio uma canção de Taylor Swift, "Love Story", e tem uma epifania.

Maria Claude Arzapalo e suas amigas seguram imagens de Taylor Swift representada como Jesus Cristo
Maria Claude Arzapalo e suas amigas seguram imagens de Taylor Swift representada como Jesus Cristo - Sarah Pabst/The New York Times

O segundo exemplo é o do presidiário Joe Garcia, no cárcere desde 2009 por ter assassinado um desafeto. Na prisão, ele percebeu na discografia de Taylor Swift tudo o que perdera de bom no seu passado. Em seu relato para a revista New Yorker, o condenado explica que as melodias de Swift provocaram nele uma reviravolta interior semelhante à que Richie teve em "O Urso".

Em ambos os casos, o interesse por Taylor Swift aproxima os dois de uma experiência-limite como também indica um fascínio pela violência nos relacionamentos; ao mesmo tempo, essa mesma violência também abre uma possibilidade de salvação na vida dessas pessoas.

Vejam, por exemplo, a canção "Love Story", celebrada por Richie em um momento de autodescoberta. Na verdade, trata-se de uma releitura da peça "Romeu e Julieta", de William Shakespeare, sem a ótica alquímica de que os dois amantes do título precisam se dissolver na morte para restaurar o reino perdido de Verona (perspectiva que o dramaturgo Leo Lama reiterou para o público brasileiro na sua brilhante versão, feita para teatro de marionetes e intitulada "Escrevendo Romeu e Julieta", exibida recentemente em São Paulo).

Para Taylor Swift, o casal maldito, modelo para os mesmos jovens obcecados por pistas existenciais nas letras da compositora, não merece sofrer a tragédia comum a quem tenta sobreviver neste cárcere que é o mundo.

Entretanto, conforme as eras da sua carreira se sucederam em uma sociedade cada vez mais conturbada, com o surgimento de guerras e de extremismos políticos, Taylor Swift permitiu que a morte fosse uma presença constante nas suas canções, apesar de o público não ter percebido diretamente tal amadurecimento artístico.

Em álbuns como "Folklore" e "Evermore", lançados durante a pandemia de 2020, e depois em "Midnights" (2022), além das regravações superiores de discos já famosos, como "Red" (2022) e "1989" (2023), ela incorporou texturas inusitadas nos instrumentos, cresceu tecnicamente como cantora e mostrou que era uma artista de fato, não apenas um mero sucesso passageiro emoldurado em um rosto bonitinho.

Entre uma canção e outra, Taylor Swift começa a aceitar a violência entre os relacionamentos amorosos que descreve em seus versos, como se esta fosse parte integrante da sua biografia como popstar. Seus álbuns passaram a ser vistos como capítulos de uma longa história —ou, para ser mais exato, de um longo diário em que o fã participa como quiser, desde que respeite os limites impostos pelo seu ídolo.

Esta estratégia de encontrar a misericórdia no limiar da mortalidade (e vice-versa), em especial nas revelações públicas feitas em seus álbuns, conecta a obra de Taylor Swift aos escritos de outra americana, Flannery O´Connor (1925-1964).

Aos 23 anos, mais ou menos a idade da própria Taylor Swift no início de carreira (e de seus seguidores, os swifties), Flannery descobriu a vocação como escritora durante a estadia em uma oficina literária em Yaddo, em Nova York.

Não foi algo fácil de ser suportado, pois, para ela, o ato de escrever era semelhante ao chamado religioso. Em "Diário de Oração" (publicado pela É Realizações, junto com o volume de ensaios, o formidável "Mistério e Costumes"), a autora suplica o seguinte: "Deus querido faz por favor que te deseje. Seria a maior das bem-aventuranças. Não somente quando em ti penso, mas desejar-te o tempo todo, pensar em ti o tempo todo, ter o desejo como guia, tê-lo como um câncer para mim. Ele me mataria qual um câncer, e seria essa a satisfação."

Há incríveis semelhanças entre esse trecho singelo e as canções mais célebres de Swift. Aqui, comparar o objeto do desejo a um câncer não é o mesmo que ocorre quando escutamos a jovem cantora refletir a respeito de um rapaz que sumiu depois do primeiro encontro ("Wildest Dreams") ou a saudade sobre um relacionamento que poderia ter sido, mas não foi ("All Too Well")? Para os swifties, tudo vale a pena na violência das paixões, até mesmo quando o amor se transforma em uma doença mortal.

Além da preferência pelas metáforas agressivas, Flannery e Swift também reconhecem, cada uma a seu modo, que ambas têm o dom de contar histórias e que estas são fundamentadas sobretudo por uma visão artística única.

No caso de Flannery, essa visão se estende em personagens danados, que testemunhamos em romances e contos como "Sangue Sábio", "O Céu É dos Violentos", "Gente Boa da Roça", "O Deslocado de Guerra" e "As Costas de Parker’; já no de Taylor Swift, temos a possessão da amante por fantasmas que a acompanham o tempo todo, assombrando os pensamentos e a imaginação (ouçam com atenção as canções "Epiphany" e "Happiness").

A trama de "As Costas de Parker", escrita quando Flannery sabia que iria morrer de lúpus (então uma doença autoimune para a qual ainda não havia medicamento adequado), é semelhante a uma das histórias musicadas por Swift.

O personagem-título é um homem cujo corpo é completamente desenhado por tatuagens pagãs; porém, ao se apaixonar por uma mulher rude e fervorosamente religiosa, não consegue entender como pode gostar de alguém que, no fundo, abomina.

Mesmo assim, ao passar por uma experiência de quase-morte, decide tatuar nas costas um ícone do rosto de Jesus Cristo. Na hora em que o exibe para a esposa, ela não entende o desvairado ato de amor, o bate com uma vassoura no local da tatuagem recém-feita e o expulsa de casa.

Taylor Swift daria um braço para transformar esse conto em uma de suas canções —assim como os swifties achariam o sacrifício bizarro de Parker algo maravilhoso e incrivelmente romântico (há algo próximo disso numa faixa-bônus de "Midnights", a impecável "Would´ve, Could´ve, Should´ve").

Isso acontece porque os fãs da cantora buscam nela o mesmo tipo de idolatria que, antigamente, as seitas religiosas procuravam em um guia espiritual ou líder político. É a violência sufocada, típica de quem existe somente no "erro de Narciso", como diria Louis Lavelle, no qual o principal engano é achar que inteligência e sensibilidade estão unidas.

Nunca estiveram conectadas; geralmente, a inteligência atrapalha a sensibilidade e vice-versa. O gênio de Taylor Swift está no fato de que, uma vez que ela se tornou uma imagem com vida autônoma (similar àqueles totens arcaicos, meticulosamente descritos por Philippe Descola em "As Formas do Visível", tratado fundamental lançado pela Editora 34), ela tem o poder necessário para unir essas duas pontas soltas do comportamento humano e mostrar ao seu público que a luz emitida por Narciso, quando este se apaixona por seu reflexo no lago, revela sobretudo a cor da noite.

E por ser justamente uma imagem, um ídolo, um ícone, Taylor Swift conseguiu criar uma história para si mesma em que o tempo não atua nela da mesma forma como age sobre os pobres mortais que são, por coincidência, os swifties. No universo estabelecido pelas confissões sonoras da cantora, não são anos, décadas ou instantes que importam em sua biografia, mas sim as "eras".

Não à toa, os concertos de Taylor Swift são mais do que meras apresentações; eles são verdadeiros ritos de passagem para quem a acompanha de perto. E, portanto, também não é por acaso que cada show seu, quando aterriza em alguma cidade ou algum país, renova a sociedade em todos os estratos, desde o econômico até o político, passando obviamente pelo artístico.

E, semelhante a qualquer rito, é a cada visita sua que todos "desejam morrer" por Taylor Swift, pois, assim como aconteceu com o Richie de "O Urso" e o presidiário Joe Garcia, ela estimula uma dissolução profunda nas vidas que atinge com sua arte.

Como uma deusa da fertilidade, alimentada pelo "erro de Narciso" que tenta se libertar por meio da música, Taylor Swift pratica na sua The Eras Tour (e em toda a sua discografia) algo paralelo ao frenesi apocalíptico que Igor Stravinsky e Vaslav Nijinsky causaram na Europa às vésperas da Primeira Guerra Mundial, quando o compositor e o coreógrafo russos lançaram o balé sinfônico "A Sagração da Primavera" (1913), cujo tema é a dança sacrificial ao redor de uma jovem virgem que, com sua morte, renovará a sua tribo decadente.

Nestes eventos, segundo Ted Gioia em "Music: A Subversive History, "a multidão procura por uma forma de controlar seus impulsos, perseguindo até mesmo uma vítima sacrificial de fato, seja para encontrar uma catarse que vá além dos limites razoáveis ou o bode expiatório a impedir uma violência que, de outro modo, se abaterá sobre cada um de nós".

Porém, ao contrário de Stravinsky, Taylor Swift não sabe como controlar essa destruição que pode atingir a sua própria pessoa e, ao mesmo tempo, transformá-la em uma espécie de salvação tanto para ela como para o público —o qual, na verdade, representa toda uma geração de jovens, a maioria incapaz de lidar com as ambiguidades da violência.

Por ser uma "antena da raça", uma "condutora" que capta, antes de todos, o que o futuro nos reserva, Taylor Swift seria a artista ideal para revelar, a quem quiser escutá-la atentamente, o adágio comum a quem suporta os dissabores da condição humana: o de que o perdão só será encontrado se você se dissolver na sua própria destruição.

Mas será que ela fará o mesmo quando enfim se encontrar com a sua "era" derradeira? Pouco provável. No mundo dominado pelo "erro de Narciso", onde os swifties desejam o seu ídolo como a um câncer, é de imaginar se, afinal, o conselho de Lou Reed, "morrer pela música", não seria também uma profecia sobre o que o destino guarda para Taylor Swift e para quem a persegue em sua jornada.

Taylor Swift no Rio

Taylor Swift em São Paulo

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