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Gustavo Mayrink

Amores impressos

Aprendi com Geraldo Mayrink o sarcasmo e o senso de humor dos jornalistas

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Gustavo Mayrink

Jornalista, publicitário e editor do site www.geraldomayrink.com.br

Geraldo Mayrink (1942-2009), meu pai, era um notório desastrado funcional. Colocava fita VHS de comprido no Panasonic quatro cabeças, pedia chope no McDonald’s e perguntava se site “tipo internet” pegava lá em casa.

— Pega, pai! Coloca um Bombril em cima do monitor!

Quis o destino, incansável gozador, que ele guardasse em pastas e caixas a maioria dos textos que escreveu ao longo da carreira, o que só pode ter sido uma vingança silenciosa e profética contra tudo o que se anunciava: as mudanças tecnológicas, o estilo “neocon” e a consequente derrocada do modelo clássico de jornalismo. “It’s the end ​of the (Microsoft) Word as we know it”, já alertava um ressabiado Michael Stipe.

Passei os últimos anos catalogando e relendo as preciosidades dessas caixas, cerca de 900 textos escritos entre os anos 1960 e 2000 nas principais Redações do país.

Como ele produzia incansavelmente, era comum que, na infância, eu fosse dormir ao som da máquina de escrever ou acordasse sem que ele tivesse voltado de um fechamento na noite anterior.

Também me lembro da aventura que era, ainda criança, visitar as Redações e percorrer aquela Disneylândia de Gutenberg e seus maravilhosos brinquedos tipográficos. Nessas ocasiões, sempre que precisava de um respiro para finalizar alguma matéria, meu pai me instruía a percorrer as mesas da Redação arrecadando fundos para investir em guloseimas. As operações me rendiam balas, chicletes, chocolates e, certa vez, um cheque de 1 milhão de dólares “assinado” pelo Delfim Netto com o qual tentei, despistadamente, comprar uma bicicleta.

Minha pedalada fiscal fracassou, mas aprendi um pouco sobre o senso de humor entre jornalistas, como no caso da repórter que não sabia empregar as vírgulas e recebeu de meu pai um conselho: “Faça o seguinte, minha querida: nesta página você escreve o texto. Nesta outra você põe as vírgulas. Deixa que eu distribuo”.

Esse ímpeto sarcástico alcançava sua plenitude nas noites de sexta-feira, quando os colegas trocavam o tique-taque das máquinas de escrever pelo tilintar dos copos de uísque e aportavam em casa para celebrar fechamentos, pautas, furos e outras exclamações. Os encontros geravam discussões eufóricas sobre o que acontecia no Brasil e no mundo nos anos 1980 e 1990, uma espécie de “trending topics” da vida analógica, cujos risos, danças e aplausos minha irmã e eu ouvíamos do quarto com um misto de espanto —“jornalistas são bem loucos, né?”— e acolhimento. Afinal, ladrão nenhum teria coragem de entrar em casa em noites como aquelas. Segue o baile!

O saldo dos folguedos eram eventuais ressacas para os participantes e uma pilha de livros, discos, filmes e revistas deixados pela casa —uma bagunça cultural que soava como abas abertas de um iPad sem senha em um sábado de manhã.

Enquanto os adultos se recuperavam, eu aproveitava para desbravar mais uma rodada de novidades aleatórias, flanando entre filmes do Hitchcock, a Playboy da Isadora Ribeiro e o novo hit de uma banda americana cuja letra, mesmo fazendo Fisk, eu só conseguia acompanhar o refrão, que embala meus maiores devaneios até hoje.

“And I feel fine!”.

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