Descrição de chapéu Rio de Janeiro

Livro defende transformar Rio em segunda capital para estancar crise

Críticos apontam que ideia não tem viabilidade e que cidade precisa enfrentar passado

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Edifício A Noite (esq.) e Museu Amanhã, localizados na praça Mauá, na zona portuária do Rio de Janeiro Tércio Teixeira - 6.ago.21/Folhapress

Alvaro Costa e Silva

Jornalista, atuou como repórter e editor. Autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro"

[RESUMO] Nova coletânea propõe que alçar o Rio de Janeiro ao antigo status de capital, dotando o país de dois distritos federais complementares, pode resolver problemas como o insulamento de Brasília do resto do país, a disfuncionalidade e a decadência econômica do estado criado em 1975 e a decrepitude do patrimônio cultural carioca.

Uma capital no centro geográfico, outra no demográfico; uma capital moderna, outra histórica; uma capital continental, outra marítima; uma capital administrativa, outra política. É o que propõe a coletânea de ensaios “Rio 2º Distrito Federal: Diagnóstico da Crise Estadual e Defesa da Federalização”: o retorno do Rio de Janeiro à condição de capital do Brasil, junto com Brasília.

“Nem Brasília se transformou em uma capital representativa do país, nem o Rio deixou de ser capital. Daí os diversos problemas que poderiam se resolver pela dupla ‘capitalidade’, que existe em outros países como Alemanha, Rússia, Chile, Holanda, Coreia do Sul, África do Sul”, afirma Christian Lynch, um dos organizadores do livro.

O cientista político acredita que a localização do poder em uma cidade eminentemente administrativa, com escassa sociedade civil autônoma, fez com que Brasília jamais conseguisse exercer as funções de representação cultural e simbólica do país.

“O Rio continuou a ser uma cidade nacional, com o maior número de servidores e de militares do país e os mais poderosos grupos federais – BNDES, Eletrobras, Petrobras –, uma cidade que a ditadura fundiu com um estado vizinho de cultura política muito diferente. Criou-se um novo estado artificial, disfuncional e decadente desde a sua invenção, em 1975.”

Com a mudança da capital do país para Brasília, em 1960, o Rio, antigo Distrito Federal, tornou-se o estado da Guanabara. Em 1975, durante a ditadura militar, o general Ernesto Geisel impôs a fusão da Guanabara com o antigo estado do Rio, cuja capital era Niterói. Formou-se, assim, o atual estado fluminense, tendo a cidade do Rio como capital estadual.

Desfazer a fusão é o que leva o historiador Nireu Cavalcanti, autor do clássico “O Rio de Janeiro Setecentista”, a discordar da ideia: “A cidade do Rio foi criada como sede da capitania do Rio de Janeiro, quase a totalidade do atual território do estado. Somos iguais àquela família rica e famosa na qual os filhos nunca trabalharam e viviam nababescamente. Os pais morreram e os parasitas não sabem como manter a opulência. É descabido culpar os fluminenses pela decadência da cidade do Rio. Temos de crescer, tornarmo-nos independentes, refletirmos sobre nossa omissão e dar a volta por cima”.

A inclusão do Palácio Capanena, o mais importante monumento arquitetônico construído no Brasil no século 20, em um feirão de imóveis promovido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, mostra uma presença da União na cidade que a existência de Brasília não conseguiu apagar.

“O leilão do edifício do ex-ministério de Educação e Saúde revela o descaso que o próprio governo tem pelo seu patrimônio. A fusão rebaixou formalmente uma cidade federal à condição de município comum. Ocorre que o Rio não é um município comum, nem mesmo uma capital estadual comum. É produto de uma história e de uma formação peculiares, uma capital nacional por quase 200 anos, o que o torna tão valioso para o Brasil como é Roma para a Itália”, acredita Lynch.

“O abandono da cidade prejudica o país inteiro: prejudica a União, porque desperdiça seu patrimônio, e prejudica o Brasil, porque é sua principal representação simbólica, com todo seu imenso patrimônio cultural, que fica entregue às traças. É incrível: enquanto em Brasília a União aluga edifícios particulares para locar suas repartições, no Rio ela os deixa apodrecer, em vez de aproveitá-los.”

A discussão é antiga. Às vésperas de o Rio deixar de ser capital, o deputado José Talarico, do PTB, na sessão da Câmara de 10 de fevereiro de 1960, não hesitou em propor que a cidade conservasse seu status, pregando a existência de dois distritos federais.

No embalo da conferência Eco-92, um movimento encabeçado pelo então prefeito Marcello Alencar defendeu a volta da capital. Em 2005, a vereadora do PV Aspásia Camargo liderou o Autonomia Carioca, cuja proposta era criar uma cidade-estado no Rio nos moldes do que era o estado da Guanabara antes da fusão.

Secretário de Governo e Integridade Pública na prefeitura de Eduardo Paes, Marcelo Calero é um entusiasta do debate. “A questão passa além da necessidade de tirar o Rio da crise. A oficialização da segunda capital é uma medida de fortalecimento institucional da República. O insulamento de Brasília distorce o processo decisório e alija os poderes da realidade do Brasil. O artificialismo cria um clima de corte real, onde se desenvolvem teias e conexões espúrias”, diz o ex-ministro da Cultura no governo Temer (MDB).

Calero, contudo, não vê como a mudança, que depende da aprovação de uma PEC no Congresso, possa acontecer na atual legislatura: “O assunto demanda uma discussão maior sobre um projeto de país e depende de um bom impulso do Executivo. Não temos nem um nem outro”.

O historiador Américo Freire, da Fundação Getulio Vargas, concorda que a hora política é desfavorável: “Imagine o Rio voltando a ser a sede dos Poderes centrais. Por certo, o governo estaria interessado em mandar em sua sede política, tal como ocorre em outros países. Tal situação não poderia interferir na autonomia da cidade? Vale o custo?”.

O deputado federal Daniel Silveira (PSL), investigado por ataques ao STF e atualmente preso por determinação do ministro Alexandre de Moraes, apresentou em julho de 2020 uma PEC para devolver o status de capital ao Rio —a cidade passaria inclusive a sediar o Congresso Nacional.

“Não deixa de ser curioso que o debate se trave no momento em que um fascista neurastênico, vindo das profundezas milicianas do Rio, tenha sido eleito presidente. Poucas coisas podem ser mais cariocas que a carreira política de Bolsonaro. Vê-lo em Brasília é ver a carioquização do Alvorada”, define o escritor e cineasta João Paulo Cuenca, que morava no Rio e se mudou para São Paulo.

Em um dos ensaios do livro “Rio 2º Distrito Federal”, o cientista político Igor Abdalla analisa o comportamento do eleitor e o processo de crise desencadeada com a mudança da capital para Brasília.

“Pariu-se um minotauro federativo que é o atual estado do Rio. A tão enfatizada questão eleitoral, o ‘carioca não sabe votar’, é muito mais consequência do que causa da contínua fragmentação institucional causada pela saída da capital e pela fusão realizada em 1975. Antes mesmo que cariocas e fluminenses elegessem diretamente seu primeiro prefeito, ou governador, a imprensa já noticiava o descalabro na segurança pública no começo dos anos 1980. O enfoque exclusivo sobre as más escolhas eleitorais permite que formadores de opinião falem do Rio sem tratar dos defeitos mais profundos que tornam o estado congenitamente disfuncional.”

Outro dos organizadores da obra, o cientista político Luiz Ramiro comenta que o combate à violência na cidade poderia ser mais eficaz, sem necessidade das constantes intervenções das Forças Armadas, com a criação do segundo distrito.

“A responsabilidade federal seria direta. A crise é de autoridade, e essa confusão entre município, estado e União tem reflexos diretos sobre a criminalidade e impunidade latentes. Superar essa confusão entre as instituições daria maior coerência à atuação das polícias. No que diz respeito às Forças Armadas é uma desmoralização que a maior sede militar da América Latina seja fatiada pelo crime organizado”, aponta Ramiro.

A favor do sistema com dupla capital, o diplomata Marcelo Calero recomenda para quem tem interesse no tema a leitura da obra “Rio, Cidade-capital”, de Marly Motta.

A historiadora, no entanto, é contra a ideia: “O Rio se tornou a cidade-capital imperial e republicana em função de um projeto próprio de Brasil e deixou de sê-lo por um investimento da ditadura militar em fazer de Brasília a capital de fato e de direito. Não vejo qualquer viabilidade política e econômica nessa iniciativa, fadada a encalhar em uma série de debates que só evidenciará a dificuldade da cidade de enfrentar uma memória do passado que insiste em se fazer presente”.

Do terreno da história para o da ficção: o pesquisador e compositor Nei Lopes está finalizando um romance, “A Última Volta do Rio”, em que o fio condutor é uma revolta armada, a Insurreição Marista, cujo objetivo é trazer a capital de novo para perto do mar. “Infelizmente se frustra, porque no fundo os objetivos não eram nada democráticos nem republicanos, como a gente agora está se acostumando a ver”, conta o escritor nascido no bairro de Irajá.

“Na real, seria um enorme benefício o Brasil voltar a ter uma capital como o Rio. Na condição de centro marítimo, político e histórico, a cidade talvez levasse o país a recuperar sua imagem simpática e atraente, que a cada dia vem ficando mais feia e repelente, e seu protagonismo internacional. E isso talvez pudesse ajudar a sanar sérios problemas sociais e econômicos.”

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