Nilton Bonder explica o judaísmo dosado de Deborah Colker em 'Cura'

Nilton Bonder explica seu trabalho no novo espetáculo da coreógrafa, que discute angústia frente a doenças incuráveis

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Márvio dos Anjos

Jornalista e crítico musical

[RESUMO] O escritor e rabino Nilton Bonder, autor do sucesso "A Alma Imoral", conta como formatou o libreto do espetáculo "Cura", de Deborah Colker, a partir de dúvidas espirituais da coreógrafa diante de uma rara doença de pele de seu neto.

Poucos espetáculos de dança são tão verbais quanto "Cura", nova empreitada de Deborah Colker. Prestes a iniciar uma turnê pelo Nordeste, os pouco mais de 70 minutos de movimentos vigorosos da obra são protagonizados por corpos, mas também por telões que trazem palavras em destaque.

Um prólogo falado abre a cena; projetam-se siglas da tabela periódica, versos extraídos dos Salmos, cantos da tradição sufi do islã, uma canção de Leonard Cohen com a prece dos mortos; em alguns momentos, até os bailarinos cantam. Ao fim, canta a plateia, em uma rara conquista em termos de dança contemporânea.

Tamanha verbalidade foi costurada pelo escritor Nilton Bonder, 63. Nascido em Porto Alegre, formado rabino em Nova York, mas carioca em gestos e entonações, Bonder é conhecido por uma vasta obra (18 livros) em que aborda temas do judaísmo, da cabala e da vida, e também pelo sucesso persistente de "A Alma Imoral", livro ramificado em peça e documentário.

A Bonder coube formatar o libreto para o espetáculo que Deborah quis montar a partir de uma angústia profundamente humana: a ausência de respostas médicas e morais para doenças incuráveis.

"No início, ela queria curar o neto", diz Bonder, referindo-se a Theo Colker, 12, que tem uma rara doença de pele. "Ela quis mapear esses recursos da religião. É mais ou menos o que leva uma pessoa a tatear suas descrenças, a procurar florais, homeopatias ou até uma pessoa como um João de Deus."

Segundo a tradição judaica, a vida boa é quando você tem muitos problemas, porque esse é o estado normal das coisas. "Mas quando você diz que sua vida só tem um problema", diz Bonder, "é porque ele é gravíssimo. Ela só tinha esse problema".

Havia um porém: desde o princípio, no fim de 2017, Deborah disse que não iria aceitar nada, e as duas respostas de Bonder não saciavam a ânsia desespiritual da coreógrafa.

A primeira era o ato de pedir: pedir a Deus, ao mundo, ao universo, e as tradições oferecem essa linguagem de súplica terapêutica. A segunda, a aceitação, era ainda mais inaceitável: soava como resignação patética.

Ante esse impasse, o projeto não saía do lugar, até que, finalmente, um dos lados recuou.

"Fui eu. Porque percebi que o pleito da Deborah é muito próprio da nossa civilização, é parte do mito humano de que, lá na frente, a gente vai resolver qualquer problema. A verdade é que a experiência humana da doença é extremamente cruel."

Deborah Colker no camarim do Teatro Alfa antes da pré-estreia do espetáculo 'Cura' - Eduardo Knapp - 4.nov.21/Folhpress

Bonder entende que a doença humana se compõe de quatro aspectos: o físico, refletido na dor; o mental, no sofrimento, que abarca as hipóteses negativas da vida futura e, no caso de Deborah, a compaixão pelo neto doente; o intelectual, traduzido em uma solidão (já que as doenças às vezes provocam medo e nojo nos saudáveis) e pela impotência profissional e afetiva; e, por fim, o espiritual, refletido pelo desespero.

Perguntei se essa mentalidade de que tudo um dia será curável vem do cristianismo, que deu ao mundo a majoritária perspectiva histórica da redenção e da correção das imperfeições.

O rabino —que incluiu Jesus em "Cura", em uma espantosa cena de silêncio coreografado— concorda, estabelecendo que, por dar menor relevância ao mundo pós-morte e pela ausência do "sistema de méritos" que vai dar no inferno, a religião hebraica se torna um contraponto interessante a esse "sarar" categórico.

Exige-se uma responsabilidade grande da consciência em vida, porque o custo vem por meio de limitações em vida.

Manifesta na pele, a doença genética de Theo remete às enfermidades da Bíblia Hebraica (ou Antigo Testamento, para os cristãos), em geral referidas como lepra infecciosa. Na Torá, Moisés pede a Deus que cure Míriam, sua irmã, acometida de uma lepra que deixa sua pele "branca como a neve" como punição por caluniar o líder hebreu. O grito de Moisés ("Al na El na refana la"), cantado na peça por Bonder, começou a subverter o próprio título do projeto.

"Disse a ela que a cura não era um tema e sim um grito", afirma Bonder, voltando ao tema da súplica. "Foi aí que a gente começou a se entender. Théo era esse personagem da cura do que não sara, que coça as feridas, que sofre, mas que também luta judô, corre e dá um jeito de viver e ser."

Isso levou ao mito iorubá de Obaluaê, menino que nasceu coberto de feridas, foi adotado por Iemanjá e se impôs no fim pela ameaça de contágio.

É nessa cena que o espetáculo exibe seus momentos de maior impacto visual, com roupas em tons sanguíneos em gestos vigorosos e a agitação das colunas de franjas, ao som da percussão perspicaz de Carlinhos Brown.

Por fim, há a canção de Leonard Cohen, "You Want It Darker", gravada pouco antes da morte do compositor judeu canadense, em que o sussurro "hineni" ("eis-me aqui") demonstra, segundo Bonder, uma atitude de resistência: é a mesma palavra de prontidão que Abraão diz na Torá, quando Deus lhe convoca para o sacrifício de Isaac, seu filho único.

Há tantos símbolos religiosos nessa verbalidade que é de se perguntar se teria sido mais fácil se Deborah estivesse aberta à religião desde o início.

"Teria sido uma interação pobre, porque a resistência dela me fez reconhecer esse grito. Não é um grito do Theo, mas o da avó. Tecnicamente, Deborah é Jó, gritando pelo retorno à harmonia, tentando compreender uma injustiça e entendendo a aceitação não como resignação, mas como resistência ante o que é inexorável."

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