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Mathias Alencastro

Quem é Eric Zemmour, a nova face da direita francesa

Polemista anti-islã passou Marine Le Pen nas pesquisas e pode ir ao 2º turno contra Macron

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Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

[resumo] Após ganhar notoriedade e seguidores ao atacar o feminismo, o islã e o multiculturalismo em textos de tom irônico e reacionário, o jornalista francês dispara nas pesquisas de intenção de voto para a eleição presidencial do ano que vem, ultrapassa nomes consolidados, como Marine Le Pen, e angaria crescente apoio de setores da direita tradicional e da extremista

Em um dia pandêmico de maio de 2020, Eric Zemmour foi filmado sendo agredido verbalmente por um motorista numa calçada parisiense. Horas mais tarde, a imprensa anunciou que o presidente Emmanuel Macron, consternado pelas imagens que circularam nas redes, telefonou ao cronista do jornal Le Figaro para expressar solidariedade e conversar sobre os rumos da França.

Macron, que se autoproclamou o “mestre dos relógios” numa recuperação megalômana da metáfora do “Grande Relojoeiro” de Voltaire, estava no seu papel: onipresente, ele zelava pelas suas crias.

Menos de um ano depois, os papéis praticamente se inverteram. Eric Zemmour acelerou a metamorfose de polemista de nicho a protagonista do teatro político.

Eric Zemmour está de terno preto e gravata diante de uma parede rosa. Ele tem a testa franzida e cabelos ralos na parte da frente
Polemista da extrema-direita francesa Eric Zemmour durante uma coletiva de imprensa para o lançamento do seu novo livro "La France n'a pas dit son dernier mot" ("A França ainda não disse sua última palavra", em tradução livre). - Eric Gaillard - 17.set.21/Reuters

Em ascensão em pesquisas eleitorais e onipresente na televisão, o autor do recém-publicado “La France n’as Pas Dit Son Dernier Mot” dita o ritmo de uma eleição presidencial que parecia caminhar tranquilamente para um segundo embate entre Macron e a líder da Frente Nacional, Marine Le Pen.

A fenomenal trajetória do filho de “pied noirs” — o nome dos colonos que regressaram da Argélia durante a descolonização — encapsula a história da França contemporânea. Com a sua voz fina e o seu carisma ordinário, Zemmour ganhou visibilidade na vida pública denunciando a “feminização” da sociedade pós-maio de 68 num panfleto sugestivamente intitulado “O Primeiro Sexo” (2006), em uma referência óbvia à obra-prima de Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo” (1949).

Sua retórica surpreendeu uma França festiva e despreocupada. Rapidamente, Zemmour ganhou o papel de moralista dos talk shows repletos de sexo, drogas e rock and roll que prosperavam nesse começo de século.

O paladino do reacionarismo, contudo, queria ser mais romano do que os romanos. Educado na tradição judia pelo matriarcado em um dos bairros mais humildes de Paris, Zemmour gostava de se apresentar como uma cria da meritocracia, assimilada e libertada das amarras étnicas, familiares e religiosas pela República.

Ele denunciou o colapso desse modelo de integração no seu segundo romance, “Petit Frère” (2009), em que um jornalista narra a história sombria do assassinato de um jovem DJ judeu pelo seu melhor amigo árabe.

A frase escolhida para a capa do livro, “o antirracismo é o novo comunismo”, denuncia o seu verdadeiro alvo: o multiculturalismo, o irmão siamês da libertação sexual, que ele descreve como um produto da “logorreia marxista de maio de 68”. Quando o livro foi publicado, as posições de Zemmour já eram senso comum. Em 2007, Nicolas Sarkozy se elegeu presidente da França com a promessa de limpar as periferias com “Kärcher”, um tipo de lava jato.

Com a ajuda da pluma de Henri Guaino, seu assessor, Zemmour desenhou durante a campanha um país conflagrado por manifestações estudantis, violências comunitárias, e minado pelo sentimento de impotência geopolítica.

O “declinismo”, ou a angústia do definhamento da França pós-moderna, foi erguido pela primeira vez como bandeira eleitoral. Para o historiador Johann Chapoutot, especialista na ideologia nazista, autor de “Le Grand Récit” (2021), o “declinismo” é simplesmente o outro lado da medalha da pátria do Iluminismo, da revolução e dos direitos humanos. Os franceses sentem que nunca estão à altura do destino da história nacional.

Mas Zemmour estava apenas começando. A conjuntura dramática abriu uma brecha para que ele ampliasse o seu espaço no debate público. Em “O Suicídio Francês” (2014), ele teoriza a ideia da “desconstrução, derrisão e destruição da nação” e designa o islã como seu maior inimigo.

Banal do ponto de vista literário, como todo o resto da sua vasta obra, o livro teve a sorte trágica de ser publicado poucas semanas antes do ataque, por dois homens armados que diziam representar um braço da organização terrorista Al Qaeda, contra o jornal satírico Charlie Hebdo, em janeiro de 2015. Logo surgiram postagens de “jesuiszémmour” (“eu sou Zemmour”, em francês) nas redes sociais.

Semanas depois, a publicação do monumental romance “Submissão”, de Michel Houellebecq, um dos maiores escritores franceses da atualidade, elevou a temática da ameaça islâmica, até lá confinada à mediocridade, a uma forma de arte.

Os anos de terror que se seguiram fizeram a glória de Zemmour e de suas posições controversas. Os pais das crianças judias assassinadas por Mohamed Merah? Eles erraram ao optar por realizar o funeral em Israel. O movimento cívico global a favor da liberdade de imprensa depois dos atentados contra Charlie? Uma formidável operação de comunicação das forças no poder. O terrorista que atropelou centenas na orla de Nice? Ele diz respeitar as pessoas que estão dispostas a morrer pelo que acreditam.

A eleição inesperada de Macron em 2017 desorganizou a direita e abriu um espaço para Zemmour na arena política. Desgastado pela candidatura fracassada de François Fillon, os conservadores do partido Os Republicanos se dividiram entre os defensores do alinhamento com a extrema direita e os remanescentes do campo centrista, diminuídos pelo projeto político do novo presidente.

Humilhada no debate do segundo turno de 2017, quando frente a frente com Macron pareceu uma vigarista, Marine Le Pen também passou a ser contestada. A sua estratégia de “desdiabolização”, simbolizada pela mudança de nome do movimento (Frente Nacional para Reunião Nacional) associado ao antissemitismo de seu pai, Jean-Marie, provocou uma rebelião dentro da ala mais radical, liderada por sua sobrinha Marion.

A candidatura de Zemmour é a aposta na união dessa direita conflagrada. Ele se descreve como um herdeiro do “velho RPR”, o partidão da direita dos anos pré-Sarkozy, vagamente racista, ancorado nos valores nacionalistas, e visceralmente desconfiado da construção europeia. Zemmour resgata as temáticas clássicas da direita tradicional e afaga os extremistas agitando o espectro do islamismo.

Por ora, ele é o único político francês a endossar publicamente a tese da “grande substituição”, defendida pelo ensaísta Renaud Camus. A ideia de que povos não europeus estariam ocupando a França já foi usada contra judeus, armênios e até italianos. Ela regressa com força a partir de 2010, quando a tese de Camus ganha espaço nos círculos da extrema direita e passa a ser associada a autores de ataques terroristas, como os ocorridos em Christchurch, na Nova Zelândia, em 2019.

A ideia de que a migração muçulmana é parte de um projeto de dominação já foi desmentida como ficção, mas explora um sentimento real: 61% da população pensa que o “islã é incompatível com os valores da sociedade francesa”.

Ao desenhar esse grande arco entre tradicionais e extremistas, Zemmour se distancia da chamada direita populista, uma modinha global que ele provavelmente desdenha, e tenta a síntese das três direitas originárias da Revolução Francesa teorizada pelo historiador René Rémond, — a legitimista, herdeira da monarquia; a orleanista, também monárquica, mas parlamentar; e a bonapartista, desconfiada das hierarquias e instituições.

Uma mulher de máscara no rosto anda em frente a uma parede com vários cartazes com o rosto do polemista de extrema-direita Eric Zemmour. É possível ler a frase "Zemmour President", ou "Zemmour Presidente" em português escrita abaixo da foto dele nos cartazes
Cartazes em Paris defendem a candidatura de Eric Zemmour à presidente da França - Sarah Meyssonnier - 13.out.21/REUTERS

Todo esse enredo político é condensado em um discurso florido e popular que garante a Zemmour uma audiência excepcional. Suas falas, pontuadas pela exaltação das “paisagens da nação”, por um revisionismo a partir de factoides e conspirações e por referências oportunistas aos grandes personagens da história, são enfeitadas com o lirismo de um estudante pretensioso.

O ritmo pitoresco das suas reflexões é brutalmente interrompido pelas tiradas sobre o islamismo, que invadem o seu discurso como ele assalta a tranquilidade do cidadão comum. Do futebol ao aquecimento global, passando pela política monetária, todas as suas intervenções desembocam no islã.

A ameaça islamista, a seu ver, paira sobre a França desde os anos 1930. Ela havia sido denunciada por De Gaulle, mas escondida pela geração de maio de 68. Os atentados dos últimos anos são apenas a manifestação mais visível de um projeto político.

Na Convenção da Direita de setembro de 2019, cercado pela elite conservadora francesa, Zemmour, no que será lembrado como o seu primeiro discurso de candidato, atacou os “colonizadores” e a “islamização da rua”, sentenciando que “todos os nossos problemas agravados pela imigração são piorados ainda mais pelo islã”.

A radicalidade de Zemmour passa despercebida no universo midiático transformado pelos movimentos sociais. A demanda pela democratização da informação se traduziu numa linha editorial que consiste em estender ao máximo os limites da liberdade de expressão.

Outrora reservados a beldades descerebradas e pensadores vaidosos, os talk shows foram tomados por membros do movimento dos coletes amarelos. Longe da figura do sindicalista sisudo e do black block descontrolado, o colete amarelo é quase sempre a cara do vizinho da esquina, horrivelmente mal informado, mas com opinião sobre tudo e encantado com o novo lugar de fala.

No meio dessa grande quermesse, Zemmour e seus discursos incendiários passam por voz do povo, a despeito dos alertas da Justiça — ele tem sido objeto de investigações por incitação ao ódio racial e alvo de inúmeros ataques do meio acadêmico, espantado com o apodrecimento da esfera pública.

A receita Zemmour tem funcionado à perfeição. Meses antes da data limite para se declarar candidato, ele já ultrapassou Le Pen nas sondagens e se consolidou como rival potencial do presidente no segundo turno.

A vitória do incumbente ainda é provável, mas está longe de ser garantida. A rejeição a Macron entre os militantes de esquerda é alta, e a força do bloco conservador, extraordinária. Somados, os candidatos de direita e extrema direita ultrapassam os 45% dos votos no primeiro turno.

Zemmour não é a primeira escolha de todos que querem ver o rei deposto, mas é, certamente, a mais tentadora. Para o eleitor inconformado com as divisões crônicas do seu campo ideológico, votar em Zemmour será como reservar um lugar no debate do século entre o tecnocrata europeísta e o cavaleiro do apocalipse.

Vítima de outra agressão verbal no começo do mês de setembro, Zemmour foi questionado se, na condição de pré-candidato, ele não estaria sendo alvo de violência política, como Macron, recentemente esbofeteado por um desequilibrado.

Zemmour disse que sofreu com a fúria dos islamistas, da qual padecem os franceses todos os dias. Já Macron, segundo ele, sentiu na pele o ódio do povo pelas elites. A campanha ainda não começou, mas o clima de mano a mano já está instalado

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