Descoberta do navio Endurance é novo capítulo de saga heroica de sobrevivência

Viagem que terminou em naufrágio há 100 anos foi o mais admirado lance da era da exploração antártica

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Homens e cães com o navio Endurance ao fundo; fotografias sobre a viagem serão expostas no Royal Geographical Society, em Londres, até 4 de maio  Real Sociedade Geográfica/Instituto de Geógrafos Britânicos

Denis Russo Burgierman

Jornalista e editor-chefe do Greg News

[RESUMO] Encontrado no mês passado, mais de um século depois de naufragar na Antártida, o navio Endurance, apesar do fracasso de seu objetivo inicial, foi o último e mais admirado lance da era da exploração antártica. A luta heroica pela sobrevivência da sua tripulação, liderada pelo irlandês Ernest Shackleton, faz pensar no valor que cada geração dá à vida.

Um mês atrás, a escuridão do fundo do mar gelado de Weddell, na Antártida, foi cortada por feixes de luz emitidos por duas potentes lâmpadas LED.

Era um AUV, na sigla em inglês, ou veículo autônomo submarino, espécie de drone aquático operado a distância por um navio quebra-gelo na superfície. Na tarde de 5 de março, a luz do AUV bateu em um piso de madeira. A expedição havia encontrado o que procurava. Aquele era o convés do Endurance, o navio mais admirado da era heroica da exploração antártica.

Ele foi achado a apenas 6 quilômetros do ponto indicado nas anotações deixadas por seu capitão, o neozelandês Frank Worsley (1872-1943), uma precisão admirável para quem só dispunha dos astros para calcular a localização.

O navio Endurance assolado por gelo durante viagem rumo à Antártida
O navio Endurance assolado por gelo durante viagem rumo à Antártida - © Royal Geographical Society

Embora o Endurance tenha afundado há mais de um século, em 1915, as imagens captadas pelo AUV revelaram que o navio estava incrivelmente bem-preservado. No convés, o timão continuava inteiro, como Worsley o manejou. Na parede externa da popa, acima de uma representação da estrela polar, as letras metálicas ainda reluziam douradas com a luz de LED, deixando ler com clareza o nome do barco. A embarcação estava sentada tranquila em águas estéreis, livres de bactérias, frias como um freezer, protegida da corrosiva luz do sol por 3 quilômetros de mar.

Não é possível dizer, contudo, que o navio está intacto. Afinal, antes de afundar, quase 107 anos atrás, ele foi mastigado por dez meses pelo mar congelado, no qual ficou preso enquanto tentava chegar à costa da Antártida. O naufrágio é a relíquia de uma aventura épica e dolorosa que durou mais de três anos e terminou de uma forma que ninguém esperava, com a sobrevivência de todos os 28 homens a bordo, liderados pelo comandante da expedição, o irlandês Ernest Shackleton (1874-1922).

A aventura do Endurance foi, mais que tudo, uma história de sobrevivência, o que deu sentido profético ao nome do navio, que significa resistência em inglês. A descoberta agora dos escombros quase inteiramente preservados acrescentou mais um capítulo a essa história.

O Endurance partiu de Londres em 1º de agosto de 1914, uma sexta-feira, no mesmo dia em que a Alemanha declarou guerra contra a Rússia, transformando uma crise local nos Balcãs em guerra entre potências. O navio ainda não havia deixado as águas britânicas quando, na segunda-feira (4), o Império Britânico entrou na guerra também, após a Bélgica ser invadida pelos alemães.

O Endurance atracou na cidade inglesa de Plymouth, quase na boca do oceano Atlântico, de onde Shackleton enviou um telegrama à Marinha Real, colocando o navio, seu capitão, Worsley, e toda a tripulação a serviço do esforço de guerra. A resposta veio logo, por telegrama, com uma palavra só: "Continue".

Shackleton não sabia, mas estava começando a Primeira Guerra Mundial. Dias depois, todas as potências europeias estariam envolvidas na maior carnificina jamais vista até então, com milhões de homens enlameando-se em trincheiras, disputando cada metro do continente.

Shackleton, contudo, estava mais interessado em outra disputa, aquela que ficou conhecida como a era heroica da exploração antártica, uma corrida entre as potências para conquistar terras no único continente que não tem povos nativos, o último a ser pisado por humanos.

A Antártida era o continente que faltava a ser dividido entre as potências coloniais. Shackleton era herdeiro de uma longa tradição de aventureiros britânicos que levavam consigo pelo mundo a bandeira cruzada de azul, vermelho e branco, construindo, na era dos impérios, o maior de todos eles.

Ele era um veterano dessa corrida. Em 1901, tinha sido o terceiro-oficial do capitão Robert Falcon Scott em sua primeira tentativa de se aproximar do polo Sul. A expedição teve que ser interrompida a 850 quilômetros do objetivo, e Shackleton precisou voltar às pressas para a Inglaterra, porque estava tossindo sangue. Era sintoma do escorbuto, doença causada pela falta de vitamina C, presente em comidas frescas como frutas, hortaliças e carnes.

No início da saga do Endurance, contudo, ele tinha um problema em termos de plano de carreira: dois anos antes, meio que se acabaram os lugares para espetar bandeiras. A corrida ao polo Sul tinha terminado de maneira trágica para os britânicos. Scott, comandante de Shackleton em sua primeira tentativa, finalmente chegou ao lugar tão cobiçado em 17 de janeiro de 1912, mas deu de cara com uma bandeira da Noruega, colocada ali um mês antes pela expedição do competente Roald Amundsen.

Scott legou à história seu diário, cujo último registro, escrito no caminho de volta do polo, foi: "É uma pena, mas não acho que consigo escrever mais. Por Deus, cuidem da nossa gente". Morreu, junto com os outros quatro membros da expedição, de frio, fome, fraqueza, doença e derrota em 20 de março de 1912.
Sem poder tirar a bandeira da Noruega, restava a Shackleton ser criativo.

Ele conseguiu algum apoio do Império Britânico, dizendo que faria a primeira expedição transantártica, passando pelo polo Sul no caminho entre um lado e outro do continente branco. Para fechar as contas, vendeu os direitos de um livro ilustrado sobre a viagem e, por isso, levou a bordo o fotógrafo australiano Frank Hurley (1885-1962).

Seu plano era chegar à terra firme, onde 14 dos 28 homens iriam desembarcar. Desses, 6 fariam a caminhada, ajudados por 69 cachorros, puxando trenós. No outro lado do continente, embarcariam em um outro navio, o Aurora, e voltariam para casa.

Só que tudo deu errado.

Em 7 de setembro de 1914, final do inverno, o Endurance encontrou o mar congelado. O gelo foi ficando cada vez mais maciço, até que, em 18 de janeiro de 1915, o barco parou de se mover —não conseguia quebrá-lo nem com a força dos motores a vapor. A baía em que planejavam atracar estava a apenas 150 quilômetros de distância, ao sul. Só que o gelo se movia para o outro lado.

O explorador irlandês Ernest Shackleton, que liderou expedições à Antártida no início do século 20 - Divulgação

Em março, os cães foram retirados do navio, para aumentar o conforto dos humanos, e acomodados em iglus que Shackleton mandou construir sobre o gelo. O verão passou e veio o outono. A variação de temperatura às vezes fazia o gelo derreter, movendo o navio; às vezes congelava de novo a água, apertando o casco de madeira.

O Endurance é um barco situado entre dois mundos. Era todo artesanal, de madeira nobre, feito na Noruega, com longos mastros sustentando vastos panos. Levava a bordo um grande sortimento de ferramentas de marcenaria, à cargo do escocês Harry McNish (1874-1930), ou Chippy, clássico apelido de qualquer carpinteiro náutico ao longo dos anos —"chip" é lasca de madeira, "chippy" quer dizer alguém sempre coberto de lascas. Ranzinza e talentoso, McNish viajava com mrs. Chippy (senhora Chippy), um gato que, conforme soube-se depois, era macho. O Endurance tinha também uma caldeira, alimentada por foguistas empoeirados de carvão, seres do mundo industrial que já tomava forma.

Shackleton decidiu cedo que trataria equanimemente sua tripulação, usando sorteios para distribuir os casacos mais potentes, dividindo a comida de maneira justa e zelando pela segurança de todos. Não que ele tenha abolido qualquer segregação. As diferentes classes lá representadas (oficiais, cientistas, artistas, marinheiros, foguistas) estavam nitidamente separadas, mas Shackleton se acostumou à ideia de que era responsável por manter vivos todos os 27 companheiros de jornada.

Quando chegou o inverno, já estava evidente que não seria uma missão banal. Enquanto o gelo carregava o Endurance para milhares de quilômetros a noroeste do seu destino original, barulhos medonhos eram ouvidos nas toras que estruturavam o barco.

Em julho, Worsley registrou no seu diário a ordem que recebeu de Shackleton: "O navio não vai aguentar essa vida, comandante. É melhor se preparar, pois é só uma questão de tempo". Essa preparação envolveu muito trabalho de McNish, que começou a adaptar um bom pedaço do madeirame do navio para a vida fora dele.

Com o fim do inverno, o gelo começou a quebrar, enquanto carregava o navio cada vez mais ao norte. Em 24 de outubro, começou a entrar água pelo casco mastigado, forçando os homens a deixar a embarcação, Shackleton por último.

Levaram consigo apenas o necessário para seguir a pé —incluindo três botes a vela, as páginas mais urgentes rasgadas da Bíblia, toneladas de mantimentos e caixas de negativos fotográficos batidos, importantes para cumprir o contrato do livro que Shackleton havia assinado. Os filhotes de cães nascidos na viagem foram sacrificados, assim como a senhora Chippy.

Os homens saíram caminhando, puxando com cordas os botes cheios de carga. O plano era andar 300 quilômetros até chegar ao mar aberto. Mais uma vez, deu errado.

Por causa da dificuldade de caminhar no gelo, tiveram que interromper a marcha e montar acampamento a apenas 2,5 quilômetros dos destroços do Endurance —tão perto que podiam ver o navio de uma plataforma de observação que construíram com madeira tirada dele. Shackleton estava sobre essa plataforma no entardecer de 21 de novembro, quando viu o Endurance emborcar com a popa para cima e afundar, instalando-se na escuridão que só seria quebrada no mês passado.

O marinheiro galês Perce Blackborow (1896 - 1949) e a sra. Chippy, na verdade o gato do navio Endurance, durante expedição liderada por Ernest Shackleton - Frank Hurley/ Scott Polar Research Institute, Universidade de Cambridge

Não é bem verdade que todos tenham sobrevivido à expedição. Além do gato do carpinteiro e dos filhotes de cães, os outros cachorros também acabariam abatidos e comidos ao longo dos meses fora do navio —assim como foram comidos centenas, talvez milhares, de pinguins e focas. Traumatizado pelo escorbuto de 1901, Shackleton fez muita questão de que houvesse farto suprimento de carne fresca.

Além disso, o Aurora, o outro navio da expedição, que deveria buscar os seis caminhantes ao final da travessia, também se meteu em problemas. Uma tempestade arrancou o barco da baía onde estava ancorado, danificando-o e deixando-o à deriva por quase um ano. Dez homens foram abandonados no gelo, e três morreram, longe dos olhos de Shackleton.

Entre os tripulantes do Endurance, a vida piorou bastante depois do naufrágio. No final de dezembro de 1915, durante uma caminhada brutal, o carpinteiro McNish explodiu de ressentimento pela morte de seu gato e se negou a obedecer ordens de seus superiores, mas nunca parou de trabalhar. Passava horas pincelando os botes com sangue de foca, para vedar os cascos muito enfraquecidos.

No final de março de 1916, após comer os últimos cães, os homens lançaram os três botes ao pior mar do mundo, o da passagem de Drake, entre a ponta da península Antártica e a outra ponta, parte da mesma formação rochosa, na América do Sul.

Foram cinco dias infernais de travessia, vários deles sem uma gota d’água para beber, sem um canto confortável para descansar, com tudo molhado no frio congelante. Chacoalhando como em um liquidificador, era quase impossível para Worsley medir a posição exata do Sol e das estrelas no céu para determinar sua posição. Ainda assim, ele acertou com precisão inacreditável.

Só por isso, e pelo bom trabalho do marceneiro, os homens conseguiram desembarcar, em 14 de abril, na gelada ilha Elefante. Estavam delirando de sede, com a pele queimada de frio. Um homem sofreu um ataque cardíaco, e outro congelou o pé esquerdo a ponto de ter que amputar seus cinco dedos.

A ilha deserta exposta ao tempo não representava salvação. Shackleton resolveu então partir com apenas mais cinco homens, entre eles Worsley e McNish, no único bote com condições de enfrentar as ondas gigantescas. Não levou o fotógrafo Hurley, e por isso imagens desse trecho, o mais impressionante da aventura, nunca foram vistas.

Realizada entre abril e maio de 1916, a travessia dos 1.500 quilômetros de mar gigante entre a deserta ilha Elefante e a habitada Geórgia do Sul, com ondas varrendo o convés e ameaçando afundá-los, foi o maior feito náutico da expedição. O mais provável era que eles se perdessem na imensidão do oceano, agulha minúscula em um vasto palheiro. No entanto, eles conseguiram chegar, em outro testemunho da habilidade de navegador de Worsley.

Só que chegaram em um lado desabitado da ilha. Três deles, os mais esgotados, ficaram na praia, enquanto os outros três escalaram uma imensa montanha coberta de neve, uma última aventura que durou 36 horas e por pouco não terminou com três cadáveres congelados na altitude e 25 homens abandonados pelo caminho, aguardando um resgate que nunca viria.

Shackleton e mais dois homens encontraram socorro finalmente em 20 de maio de 1916, em uma estação baleeira norueguesa na Geórgia do Sul. A expedição ainda se prolongaria por vários meses, enquanto Shackleton tentava encontrar um navio disposto e capaz de chegar à inóspita ilha Elefante para buscar seus companheiros.

Em 30 de agosto de 1916, dois anos depois da partida de Londres, o vapor Yelcho, de casco metálico e bandeira chilena, finalmente levou Shackleton à ilha Elefante, onde ele encontrou o casulo construído com dois botes virados um para o outro, protegendo 22 homens que já tinham perdido a esperança de serem resgatados. Estavam todos vivos.

Não ficariam assim por muito tempo. Vários membros da expedição voltariam à Grã-Bretanha a tempo de se incorporar à guerra, onde a regra era a morte. No confronto de trincheiras, às vezes mais de 10 mil pessoas precisavam morrer para que seu Exército avançasse 100 metros, uma lógica radicalmente diferente da de Shackleton.

Em meio a tanta morte, histórias de sobrevivência saíram de moda, e os únicos heróis eram os de guerra. A Marinha britânica não deu muita atenção aos filhos pródigos, como conta o livro "Endurance", da escritora Caroline Alexander, que compila tudo o que se sabe da expedição a partir dos diários dos tripulantes, das fotos de Hurley e de outras fontes. Shackleton não foi aclamado —o trágico Scott, mais condizente com os tempos, seguiu sendo o nome associado à exploração polar.

Em 1918, a maioria dos tripulantes do Endurance foi agraciada pela Coroa com a Medalha Polar. Quatro homens tiveram a homenagem negada, provavelmente por decisão de Shackleton. O marceneiro McNish foi um deles, talvez por causa de sua explosão de raiva. Ao fim da guerra, Shackleton lançou o livro prometido, "South", que vendeu bastante, mas os direitos autorais foram tomados na Justiça pelos herdeiros de um de seus financiadores.

A era heroica da exploração antártica havia acabado —a viagem do Endurance foi seu último lance. Em 1920, Shackleton decidiu que organizaria uma nova expedição, embora não tivesse nitidez de seus objetivos.

Com vários dos membros da primeira expedição, inclusive Worsley, navegou da Inglaterra ao Rio de Janeiro, onde, no final de 1921, teve um infarto. Decidiu seguir em frente e chegou à sua amada ilha Geórgia do Sul. Morreu lá, do coração, aos 47 anos, em janeiro de 1922, cem anos atrás. Lá ficou, sepultado na terra gelada.

Quando a neblina da guerra se dissipou e ficou também para trás o trauma da pandemia de gripe espanhola, o mundo era um lugar diferente, acostumado com a morte. Os impérios que fatiavam o planeta estavam enfraquecidos. O carpinteiro McNish seguia vivo, mas nunca mais conseguiu trabalho, já que agora os barcos eram de metal. Morreu em 1930 como indigente, na Nova Zelândia, ainda ressentido com Shackleton, não tanto pela negação da Medalha Polar, mas pela morte da senhora Chippy, seu gato.

Worsley ainda passou anos se aventurando. Afundou um submarino alemão na Primeira Guerra, procurou tesouros no Pacífico nos anos 1930 e quase assumiu o comando de um navio na Segunda Guerra. Só perdeu o posto porque descobriram que ele tinha 70 anos. Morreu em 1943, de câncer do pulmão.
A Segunda Guerra acabaria matando cerca de 80 milhões de pessoas, parte delas em um projeto de extermínio. Somando à Primeira Guerra, foram quase 100 milhões de mortos.

Anos depois, o nome de Shackleton ultrapassou o de Scott e o de Amundsen no panteão dos heróis polares, apesar do fracasso de todas as suas expedições. Virou símbolo do cuidado com cada vida. O planeta seguiu dando voltas, com suas guerras e pandemias, enquanto o Endurance jazia preservado no fundo do oceano, de onde provavelmente jamais será retirado.

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